Confidências

Cada um tem sua preferência quando o assunto é aproveitar o final de semana. Uns gostam de sair, outros de ficar em casa, mas é quase uma unanimidade a opção de ficar bem longe do trabalho. No entanto, Beatrice e Miguel fazem parte de uma minoria. Fotógrafos da agência Buscando Inspiração, os dois aproveitavam o tempo livre para mais fotografias. O diferencial estava no fato de poderem escolher onde e quais imagens capturar, e o que o casal mais amava era colecionar registros de construções em ruínas.

— Como você conseguiu autorização para entrar e fotografar a escola? — perguntou Beatrice acomodada no banco do carona do carro.

— Usei meu charme — respondeu Miguel piscando o olho direito para a amiga.

— Você pagou, né? — retrucou a mulher enquanto apertava os botões no painel do rádio do carro em busca de uma música que agradasse aos dois.

— Sim, — admitiu ele rindo. — Infelizmente parece ser a única linguagem que esse mundo entende. — Ele suspirou.

— Depois me fala quanto você gastou pra gente dividir.

— Deixa essa música — pediu ele ao ouvir os primeiros acordes de Bones da banda Imagine Dragons. — Não precisa me pagar nada. Você trouxe nosso almoço. — Ele sorriu para a mulher.

— Duvido que você conseguiria a autorização pelo preço de quatro sanduíches e duas latas de suco.

— Não trouxe sobremesa? — perguntou ele.

Beatrice apenas riu. Óbvio que havia trazido doce, para ela e o amigo. Assim que saiu do trabalho na sexta-feira, ir até a loja de chocolates preferida dos dois foi a sua primeira tarefa antes de ir ao mercado comprar os ingredientes para os sanduíches de frango, queijo, maionese e cenoura que ela havia preparado.

O bairro residencial para onde os dois estavam indo era afastado do centro da cidade, e as poucas habitações presentes ficavam a uma distância considerável uma da outra. O local onde funcionava a escola, agora desativada, era uma construção de dois andares que algum dia provavelmente foi amplo e acolheu bem várias crianças e adolescentes, mas do prédio isolado no final da rua restava apenas a ruína. Um esqueleto de pilastras de concreto com paredes finas cobertas de heras verdes e amareladas e janelas de vidro que quase não deixavam passar a luz de tão opacas por conta da sujeira.

Miguel parou o carro na frente do portão, a única abertura no muro que circundava todo o terreno, e desceu com a chave para destrancar o cadeado. Aquela era a única parte nova da construção. Quando a escola fechou, depois de 50 anos de funcionamento, o proprietário do prédio e do terreno mandou reformar e aumentar a altura dos muros e trocar o portão de barras de ferro por um do mesmo material completamente fechado.

Sua ideia era vender, mas as ofertas tanto das construtoras, que queriam demolir tudo e construir outra edificação, quanto da prefeitura, que pensava em transformar a antiga escola em um espaço cultural, eram bem mais baixas do que ele desejava. Assim, o prédio foi abandonado e se deteriorava cada dia mais.

Liberada a passagem, Beatrice levou o carro para dentro do pátio, enquanto seu amigo fechava o portão e o trancava novamente para a segurança deles enquanto exploravam o local. A primeira impressão que o ambiente causou nos dois foi de euforia pela quantidade de material para fotografar. Assim que desceu do carro, a fotógrafa pegou sua câmera e começou a fazer registros do pequeno parque tomado pelo mato e brinquedos de ferro corroídos.

Miguel também fez o mesmo e os dois ficaram alguns minutos apenas apreciando a beleza deteriorada e fazendo registros com suas câmeras. A atividade transcorria tranquilamente até que um grito apavorado do amigo fez Beatrice correr para dentro da escola para checar o que havia acontecido. A mulher o encontrou ofegante apoiando as mãos nos joelhos enquanto a câmera balançava na frente de seu corpo dobrado pendurada no pescoço por uma faixa de couro.

— O que aconteceu? — perguntou ela, aflita.

— Minha alma quase saiu do corpo! — O homem tentava se recompor.

— Parece que você viu um fantasma... — Ela deu uma risadinha.

— Quase isso... — Miguel apontou na direção de um armário nos fundos da sala.

Beatrice caminhou um pouco hesitante na direção indicada, mas quando descobriu o que assustou o amigo, começou a rir.

— Um jaleco. — Ela pegou o objeto que um dia havia sido branco pendurado no cabide e tirou do armário. Analisando a peça a mulher até compreendeu o susto do homem, mas esse tipo de elemento era extremamente comum em lugares como aquele. Nem sempre as pessoas levam tudo quando deixam um local.

— Mas poderia ser o campeão de pique esconde da escola — ironizou ele enquanto se aproximava dela.

Beatrice riu alto com a piada.

— Se você continuar se assustando desse jeito vai acabar tendo um infarto — disse ela recolocando o jaleco no lugar. — Esses lugares são sempre assim. Acho que é por isso que eu gosto tanto. Aguça meus sentidos.

— Os meus também. — Ele sorriu para a amiga e foi correspondido. — Acho que já podemos fazer uma parada para o almoço.

— Quer comer aqui dentro? — provocou Beatrice.

— A professora só permite lanche no pátio — informou ele.

A dupla de amigos seguiu para fora do prédio e, depois de deixar o equipamento dentro do carro tentou se acomodar no parquinho deteriorado. Uma mesa de concreto com bancos do mesmo material depois de uma limpeza rápida serviu perfeitamente para comportar tudo o que Beatrice havia trazido. Sanduíches de frango, com cenoura e maionese, beterraba com cenoura e maionese, latas de suco para acompanhar e trufas de chocolate de sobremesa. Os amigos se sentaram de frente um para o outro em lados opostos da mesa.

— Eu vi um fantasma de verdade uma vez — revelou Miguel depois de dar uma mordida num sanduíche de frango com cenoura.

— Como assim de verdade? — A mulher quase engasgou com o suco de uva.

— Eu tinha por volta de 6 anos e estava de férias na casa dos meus avós. Não é aqui na cidade. — Ele limpou a boca com um guardanapo de papel antes de beber um gole de seu suco de maracujá. — Tava brincando de caça ao tesouro no quintal quando um menino apareceu e começou a brincar comigo. Achei que fosse alguém da vizinhança, mas ele fugiu correndo quando minha avó avisou que o lanche estava pronto.

— Você chamou ele para ir junto? — quis saber a mulher ainda sem enxergar o elemento sobrenatural do relato.

— Eu tentei, mas no tempo que eu olhei em direção a casa para responder minha avó que eu já estava indo ele desapareceu. — Miguel terminou o sanduíche. — Eu comentei com ela sobre o menino e enquanto estava tentando explicar como ele era vi uma foto em cima de um armário da sala de jantar com um menino muito igual. Quer dizer, era ele. Tinha que ser.

— E quem era o menino da foto? — perguntou Beatrice entregando um segundo sanduíche para o amigo.

— Meu tio, um que eu nunca cheguei a conhecer. Ele morreu com 5 anos de tuberculose. — Miguel mordeu o sanduíche. — Minha avó ficou nervosa e meu avô bem bravo, mas aos poucos meus tios convenceram os dois que eu imaginei a aparência do menino depois de ver a foto e a solução deles foi ironizar o que tinha acontecido. Virei alvo de piada de toda família.

Beatrice deu um sorriso tímido para o amigo indicando que compreendia a dor dele.

— Porto seguro, é o que dizem... — lamentou ela enquanto Miguel concordou com um aceno de cabeça. — É a primeira vez que você fala sobre isso com alguém fora da sua família?

— Não, — respondeu ele. — Mas é a primeira vez que alguém presta atenção e me ouve sem me interromper ou começar a rir.

— Pode ser por medo... Ou por não querer pensar nessas coisas.

— Não sei, mesmo quando é um assunto mais leve, raramente prestam atenção no que eu falo. Acho que não sou muito interessante.

— Eu discordo — Beatrice sorriu afetuosamente antes de pegar as trufas de chocolate no fundo da pequena bolsa térmica onde trouxera tudo e colocar sobre a mesa.

Miguel retribuiu o gesto antes de a ajuda a reunir as embalagens vazias e guardanapos sujos antes de pegar o primeiro doce.

— Aconteceu algo parecido de novo? — perguntou a mulher mordendo um chocolate.

— Não, e durante muito tempo eu rezei para que nunca mais acontecesse — explicou o homem. — E com o passar dos anos, comecei a duvidar do que eu tinha visto e é por isso que eu venho em lugares assim. Pra ver se acontece algo parecido.

— Eu nunca ia adivinhar — afirmou Beatrice. — Mas você precisa se preparar melhor. — Ela riu. — Ou qualquer dia sai de ambulância.

Miguel riu alto concordando com a opinião da amiga recordando do susto que levou com o jaleco.

— Eu gosto pela resistência desses lugares de se manter de pé mesmo com todas as adversidades — declarou ela quando o homem parou de rir. — Se eles conseguem, eu também consigo.

— Claro que consegue, — afirmou ele. — Mas não precisa mais fazer isso sozinha.

Beatrice abriu um sorriso que iluminou todo seu rosto e entregou a última trufa de chocolate para o amigo em um gesto silencioso de agradecimento pela companhia e compreensão que ele sempre demonstrava.

Mais uma história do casal de amigos Beatrice e Miguel. Se quiserem ler mais textos dos dois, acesse AQUI.

Gostaram dessa pequena história/troca de confidências? Vocês já tiveram alguma experiência sobrenatural? Eu nunca! Já basta os medos que minha imaginação me fazem passar!

4 comentários:

  1. Olá!
    Amei a história e quero sempre ver mais histórias aqui. Amei o casal de amigos.
    beijos.


    https://www.parafraseandocomvanessa.com.br/

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    1. Oi Vanessa,
      Fico feliz que tenha gostado!
      Todo mês vou publicar uma história nova aqui!

      Beijos;

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  2. Olá, Helaina.
    Gostei bastante da história e do casal protagonista. Sua escrita é muito boa e faz com que o leitor queira ler mais histórias sobre eles.

    Prefácio

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    1. Oi Sil,
      Fico feliz que você tenha gostado!
      Volte mais vezes! Pretendo atualizar o blog uma vez por mês!

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