Primeiras Lembranças

Audrey Zephyrus estava deitada no sofá sobre o peito de John, que a acolhia em um abraço carinhoso, ainda abalada com as recentes descobertas. Ela tentava absorver as informações, mas eram muitas. Depois de um teste de DNA provar que Alexander Boreas, William Notus e Wendy Eurus eram seus irmãos, mesmo que ela não tivesse lembranças deles, ficou sabendo sobre seu sequestro e consequente desaparecimento durante 2 anos. Além disso, a mais nova deles, Wendy, havia cometido um crime e estava presa, tragédia que contribuiu para o trauma de William, com quem agora dividia o sobrado no centro de Londres, o fazendo esquecer a existência das duas.

Os irmãos se olhavam constantemente em silêncio estranhando o fato de não reconhecerem um ao outro, e a esperança que algo de repente faria com que ambos se lembrassem parecia cada vez mais ficção científica. Alexander já se encarregara de marcar uma consulta psiquiátrica para a irmã para começar a investigar a causa da falta de memória, suspeitando da transtorno de estresse pós-traumático, o mesmo diagnóstico de William, para tentar possíveis tratamentos. Nenhum deles estava disposto a simplesmente aceitar o fato, se apresentar e recomeçar a vida daquele ponto deixando o passado em branco. Aquele pensamento deu a Audrey uma ideia.

Primeiros encontros geralmente eram marcantes, mas infelizmente não poderia pedir ajuda aos irmãos, pois a informação era que haviam crescido juntos. No entanto, tinha uma pessoa ali que entrou para a vida dela, e segundo relatos, quando a mulher estava prestes a completar seus 18 anos. Não era tempo demais para ser esquecido caso sua memória não tivesse se perdido.

— John, — chamou com uma voz doce. — Como nós dois nos conhecemos?

Um sorriso iluminou o rosto do homem enquanto sua memória o levava de volta para o início dos anos 2000 quando ele era um jovem desamparado e solitário de 21 anos.

— Num café, há 12 anos — respondeu ele. — Eu estava sentado em uma mesa esperando pela minha irmã e você simplesmente apareceu, se apresentou e me chamou para sentar junto com a Wendy e o William.

Do outro lado da sala, sentado em sua poltrona, o homem ouvia com atenção ao relato, pois aquela memória há muito tempo havia sido tirada dele também e agora parecia tentar se materializar como um borrão em sua mente.

— Você veio sentar com a gente? — quis saber ela.

— Não, — a resposta dele transparecia um pouco de tristeza. Não por arrependimento de não ter aceitado o convite, mas por outras memórias que começaram a aparecer sem pedir licença. — Então você me passou seu telefone e voltou para junto dos seus irmãos.

— Assim, do nada? Cheguei e te dei meu número? — A mulher riu com a ousadia de sua versão mais jovem.

— Você disse que não estava acostumada a fazer aquele tipo de coisa, mas fez — John sorriu para ela.

— Você me ligou?

— Não, — respondeu o homem ainda sorrindo. — Você pediu pra te mandar mensagem, porque não gostava de falar ao telefone. Depois de algum tempo conversando, nós marcamos um encontro. O primeiro de muitos.

William estava chocado por não lembrar daquilo. O trauma que sofreu ao ter seu amigo de infância assassinado pela irmã havia apagado as duas completamente de sua memória. O encontro com Wendy a trouxe de volta, mas por algum motivo ainda sem explicação, o mesmo não aconteceu ao ver Audrey. Aquilo o deixou confuso e o fez pensar que talvez uma reunião familiar completa poderia ajudar.

Conversaria com Alexander sobre a possibilidade de visitarem a irmã na prisão. Se possível antes de encontrarem com seus pais. O casal de idosos estava sendo poupado até que tivessem informações mais concretas sobre o estado de saúde de Audrey e a segurança para viajar com ela até o local onde eles moravam. O fato de ainda não terem prendido os responsáveis pelo sequestro complicava as coisas por não saberem de quem a irmã precisava ser protegida.

— Você estava aqui quando eu fui sequestrada? — continuou a mulher.

— Não, — informou John. — Eu me alistei no exército e fui enviado pro campo de batalha.

— E a gente continuou se falando?

— Por carta, mas depois de um tempo suas respostas pararam de vir, e eu achei que você tivesse se cansado de mim…

Audrey havia virado o corpo enquanto falava e brincava com a franja do homem que não se importava com o fato do cabelo ficar desarrumado. O toque dela trazia de volta a paz e o conforto que sentia quando estava com a namorada anos atrás. John estava ansioso para reatar o relacionamento interrompido, mas esperaria o tempo que a mulher precisasse antes de fazer a proposta a ela.

— Foi quando eu desapareci?

— Sim, — confirmou ele. — Alexander me contou e me devolveu minhas cartas quando me pediu para manter segredo sobre você. William não lembrava nada do passado envolvendo você e a Wendy.

A mulher virou a cabeça para o lado e olhou para o irmão que acompanhava a conversa com atenção.

— Por que você foi para a guerra?

— Queria ficar longe de uma pessoa… — John engoliu seco.

— De quem?

— Meu pai…

— Por que você não veio morar com a gente? — Ela sorriu para o homem. — Se éramos todos amigos…

— Foi o que você sugeriu na época, — o homem acariciou o rosto da mulher que tanto amou percebendo como aquele sentimento ainda era forte.

— E então?

— Não era longe dele o bastante… — lamentou ele. — Tive medo de colocar vocês em perigo.

— Ele era tão mal assim?

— Já me mandou para o hospital, apesar da gente nunca ter conseguido provar o envolvimento dele, e antes disso, você já precisou juntar os pedaços uma vez. — Um riso saiu depois da afirmação, mas era de puro sarcasmo. — Quer ver a cicatriz que ficou?

— Se você não se incomodar, — respondeu ela esperançosa que aquilo pudesse ser útil de alguma forma. Cuidar de um ferimento grande era algo que com certeza a marcaria. Sentia aflição só de pensar.

John afastou as costas do sofá levantando a mulher junto com ele. Depois a soltou e ficou de pé para se sentar na frente dela.

— Você também estava no dia, William — avisou o homem enquanto tirava a barra da camisa social para fora da calça.

O irmão de Audrey atravessou a sala e se aproximou também querendo ver a cicatriz na mesma tentativa que ela de reavivar sua memória com a informação.

— Do lado esquerdo perto do quadril — indicou John exibindo as costas enquanto segurava a camisa e o suéter Aran bege claro embolado na metade do tronco e inclinando o corpo um pouco para frente.

— Foi um corte profundo… — declarou ela fazendo o homem estremecer pela escolha de palavras.

As mesmas que ela havia usado na ocasião.

— Um atiçador de lareira — respondeu ele da mesma forma que no dia, para ver se a ajudava a se lembrar.

— Que desculpa ele usou dessa vez?

Por algum motivo, aquelas palavras simplesmente haviam aparecido na mente de Audrey.

— Arranhei o carro com minha bicicleta — John não conseguia conter as lágrimas ao ter com a mulher a mesma conversa de anos atrás na noite chuvosa em que ela cuidou dele.

— Uma sutura… — ela tocou a cicatriz com as pontas dos dedos enquanto imagens da ferida ainda aberta apareceram como flashes em sua mente. — Eu não era médica…

— No momento você era tudo que eu tinha — o homem girou o corpo e soltou a roupa enquanto olhava para a mulher.

— John… — ela estendeu as mãos e segurou o rosto dele.

A dor daquele dia estava de volta, mas também a felicidade por finalmente as lembranças da juventude dos dois estarem voltando.

— Zephy… — o homem disse o nome pelo qual costumava chamar a namorada. Desde que havia voltado ela escolheu ser chamada por seu primeiro nome, mais comum, assim como faziam os irmãos.

— Posso te beijar? — sussurrou ela enquanto passava os polegares sobre os lábios dele.

— É o que eu mais desejo desde aquele dia que te encontrei ferida na frente da porta.

Audrey fechou os olhos e inclinou o corpo para frente se guiando pela posição de suas mãos até seus lábios encontrarem os de John. O beijo que começou tímido, mas aos pouco foi ganhando intensidade enquanto o passado dos dois aparecia em imagens desconexas na mente da mulher.

Um bilhete com um número sobre a mesa de um café, um passeio de mãos dadas entre as árvores, enfeites de Natal, uma caverna na beira da praia, uma cabana em um lugar isolado, John encharcado parado na calçada debaixo de um temporal. As memórias passaram a ser olfativas e ela sentiu o cheiro do antisséptico que usou para limpar a ferida, dos ovos mexidos e o café preparados para ele na manhã seguinte.

Quando se afastaram para recuperar o fôlego, os dois estavam sorrindo. Audrey não tinha se lembrado de tudo, mas definitivamente era um avanço. A falta de William no cômodo fez os dois rirem ao notar que haviam ignorado a presença dele ali enquanto se beijavam e deixado a cena um pouco desconfortável para o irmão mais velho dela.

Por favor, na sala não — disse John rindo com uma imitação ruim do amigo. — Era o que ele costumava dizer.

Audrey riu imaginando quanto constrangimento deveria ter causado ao irmão quando mais jovem.


E declaro aberto os trabalhos aqui no Universo Invisível! Gostaram?

Essa cena faz parte de um universo que criei (leia mais aqui), mas não pretendo explorar em forma de livro ou história linear, apenas algumas cenas aleatórias para exercitar minha escrita. Tenho preferido trabalhar minhas histórias originais se passando no Brasil, de preferência em Minas Gerais, e essa é ambientada em Londres. Ela foi inspirada na minha fanfic da série Sherlock da BBC, Memórias Anônimas que já ganhou uma sequência: YOLO - Só se vive uma vez. Ambas completas e disponíveis no Wattpad. As fanfics seguem um caminho completamente diferente desse universo alternativo que criei a partir delas.

10 comentários:

  1. Muito bom Helaina! Você é ótima viu. Abraço!

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  2. Gostei muito deste pedaço. Ficou o desejo por saber mais da história.

    Beijos.

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    1. Fico feliz que tenha gostado! Ainda não sei quando continuarei.
      Beijos;

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  3. Vc escreve muito bem!
    Bj e fk c Deus
    Nana
    http://procurandoamigosvirtuais.blogspot.com

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  4. Gostei muito da sua ideia de criar cenas aleatórias para exercitar a sua escrita!
    Você escreve muito bem
    Beijinhos
    Renata
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    Respostas
    1. Que bom que gostou! Quero treinar a escrita e tentar praticar o desapego... pelo menos não estou escrevendo romances completos. Apenas contos.
      Muito obrigada! :D

      Beijos;

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  5. Oi, sou nova aqui. Menina, achei você muito talentosa! Uma excelente escritora. Parabéns! 😊🌟
    Bjs
    https://deliriosdeumaliteraria.blogspot.com/

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