Sangue inocente

— Não precisa me esperar acordada — disse João, o lobisomem, enquanto se livrava das roupas antes da transformação.

Como havia uma floresta bastante densa a poucos metros do quintal dos fundos, não precisava mais passar da forma humana para lobo vestido. Isso poupava seu guarda-roupa da necessidade de reparos constantes.

— Ah, meu sacrifício de toda lua cheia… — reclamou Catarina. — Vou começar a esperar dentro de casa até que você esteja com o corpo todo coberto de pelos e a aparência de um lobo gigante.

— Eu sei que você gosta de apreciar esse corpinho atlético. — João fez uma pose com os braços como se fosse um fisiculturista sendo julgado.

— Pelo amor da nossa amizade, vai pra luz, por favor! — A bruxa havia fechado os olhos durante o exibicionismo do amigo, mas não conseguia segurar o riso.

Primeiras Lembranças

Audrey Zephyrus estava deitada no sofá sobre o peito de John, que a acolhia em um abraço carinhoso, ainda abalada com as recentes descobertas. Ela tentava absorver as informações, mas eram muitas. Depois de um teste de DNA provar que Alexander Boreas, William Notus e Wendy Eurus eram seus irmãos, mesmo que ela não tivesse lembranças deles, ficou sabendo sobre seu sequestro e consequente desaparecimento durante 2 anos. Além disso, a mais nova deles, Wendy, havia cometido um crime e estava presa, tragédia que contribuiu para o trauma de William, com quem agora dividia o sobrado no centro de Londres, o fazendo esquecer a existência das duas.

Os irmãos se olhavam constantemente em silêncio estranhando o fato de não reconhecerem um ao outro, e a esperança que algo de repente faria com que ambos se lembrassem parecia cada vez mais ficção científica. Alexander já se encarregara de marcar uma consulta psiquiátrica para a irmã para começar a investigar a causa da falta de memória, suspeitando da transtorno de estresse pós-traumático, o mesmo diagnóstico de William, para tentar possíveis tratamentos. Nenhum deles estava disposto a simplesmente aceitar o fato, se apresentar e recomeçar a vida daquele ponto deixando o passado em branco. Aquele pensamento deu a Audrey uma ideia.

O começo de um sonho

Annabelle jogou a cabeça para trás e mexeu o pescoço de um lado para o outro assim que terminou de recolher a louça suja deixada na mesa pelas duas clientes que haviam acabado de sair do Art's Café.

— Cansada? — perguntou Felipe que trabalhava como caixa no café de seu pai, Arthur.

— Com calor… — respondeu a funcionária que usava um avental bege de sarja lisa com detalhes estampados nas cores vermelho e verde na barra, perto do pescoço, em volta de um único bolso e da fita para amarrar na cintura. Sobre esse bolso, ainda havia um Papai Noel bordado em patch aplique e ponto caseado. Ela tirou a bandana, da mesma estampa dos detalhes coloridos, já um pouco úmida na região das orelhas.

— Vou diminuir mais um pouco a temperatura do ar-condicionado — avisou o homem pegando o controle remoto branco. Como não estava atendendo as mesas naquele dia, ele usava suas roupas comuns, jeans e camiseta azul de mangas curtas com estampa remetendo a um filme de fantasia.

A mulher sorriu para o amigo em agradecimento.

O sinal que faltava

Muita coisa aconteceu nas vidas de Gregory e Stella desde que se conheceram no Brasil durante a primeira investigação internacional dos dois. Ambos não haviam completado 30 anos quando um assassino em série uniu as polícias de Las Vegas e Juiz de Fora para acabar com a trilha de sangue deixada pelo homem que atraía crianças para a morte. Caso resolvido, Greg, sua parceira, Sara, e o chefe dos dois, Jason, voltaram para os Estados Unidos deixando um convite para Stella se juntar a eles.

Meses mais tarde, era ela quem viajava para uma experiência trabalhando fora do país. Foi quase um ano e vários casos resolvidos até que a turbulenta noite da cidade estadunidense que nunca dorme a fez sentir saudade da relativa paz que tinha em sua cidade natal no interior de Minas Gerais. Com a promessa que voltaria para visitar os amigos que fez na equipe de peritos e investigadores de Las Vegas, Stella retornou ao Brasil.

Além do casual

Não era a primeira vez dela em Londres, porém, muita coisa havia mudado desde então. A Terra da Rainha agora tinha um rei, seu filho, que assumira o trono após a morte da mãe, e ela própria tinha uma herdeira. Era a primeira viagem internacional da bebê e o primeiro lugar que a mulher quis que a filha conhecesse. A cidade onde ela havia se apaixonado e sido correspondida pela primeira vez, evento o qual a motivou a acreditar que tinha o direito de ser feliz, sem o qual talvez nunca tivesse gerado uma criança.

As duas estavam na varanda do hotel terminando o café da manhã, quando, em uma conferida nas redes sociais de seu ator favorito, ela descobriu que o homem estava gravando na cidade aquela manhã. Buscando informações sobre o filme, a mulher se deparou com um convite irresistível. A equipe de filmagem estava procurando uma criança menor de 1 ano para gravar com o ator na cena final do filme.

A pequena loja de substantivos abstratos

O sininho em cima da porta da loja soou avisando ao velho homem atrás do balcão de madeira sobre a entrada da cliente. A jovem de cabelos pretos sorriu para o idoso que já conhecia de outras visitas e se apressou em dizer o que havia vindo buscar. Edgar sorriu enquanto Lara retirava a lista do bolso da calça jeans.

— Preciso de 5 meias verdades, 1 mentira e 3 alegrias, por favor.

— Pedido grande dessa vez… — comentou ele pegando pequenos potes de vidro vazios embaixo do balcão antes de se virar de frente para os maiores nos nichos da estante que cobria toda a parede atrás dele. — Algum motivo especial? Se me permite perguntar…

— Reunião de família — respondeu Lara sem se constranger enquanto seus olhos vagavam pela loja. Todo mundo levava aquele tipo de coisa para encontros como aquele. — O que tem naquele pote na vitrine, Edgar?

Amizade pra vida toda

O frio típico do mês de julho aparentemente havia vindo com mais força na cidade do interior de Minas Gerais e não havia quem não estivesse com, pelo menos, um sintoma de gripe. Annabelle, com a vacinação em dia, ficou livre dos sintomas mais severos da doença sazonal, mas nem por isso conseguiu passar o período sem o nariz entupido, garganta arranhando, olhos lacrimejando e corpo pesado e dolorido.

Ao perceber como estava naquela manhã de quarta-feira, ela imediatamente ligou para seu chefe com a intenção de avisar que estava sem condições de comparecer ao trabalho. Lidando diretamente com o público e a comida na cafeteria, não poderia arriscar a colocar as pessoas em contato com um vírus desconhecido. Todos ainda estavam bastante traumatizados com o que havia acontecido em 2020.