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Guardado e Esquecido

"A primeira vez em que eu me apaixonei foi em 1993. Paixão pré-adolescente que deixa sem fôlego, o coração dispara, pupilas dilatam e as mãos suam. Mas não deu certo. Ele ficou sabendo, mas não se interessou. Normal. Nem sempre as coisas saem como a gente quer.
A segunda vez que eu me apaixonei foi no ano seguinte. Não foi exatamente uma paixão individual. A maioria das meninas da mesma idade era apaixonada pelo carinha na escola. Imagino que ele deve ter namorado alguma. Não eu, claro.
Já na terceira paixão, começou com um cuidado. Um dos meninos da turma precisava de muletas e alguém que levasse suas coisas até a porta da escola. Aquele menino que precisava de ajuda chamou minha atenção e logo o carinho com ele foi se transformando em paixão. Platônica mais uma vez, pois mesmo com toda atenção, o garoto não se interessou. Comecei a achar que deveria haver algo errado comigo.
Quando completei 13 anos tive minha paixão mais duradoura. Ele era muito diferente dos outros. Chamava atenção pelo seu jeito nerd de ser. Meu primeiro contato com esse grupo de pessoas. Passou a povoar meus sonhos, meus pensamentos. Tudo era para ele. Ficamos próximos, mas saber que eu era apaixonada por ele nunca permitiu que fôssemos realmente amigos. Tinha sempre uma tensão entre nós. Foram 3 longos anos até que eu desencanasse, porque reciprocidade dele eu nunca tive.
Nessa época tive que começar a mentir para os colegas de escola que começavam a contar com quantos meninos ficavam. Eu tinha vergonha de ser a única bv da turma.

Aos 16 anos, já com poucas esperanças de conquistar qualquer garoto, um dom diferente aflorou em mim. Apaixonei-me outra vez. Mas no meio do processo apareceu um alguém. Uma menina. Que também era apaixonada pelo garoto. Ela pediu minha ajuda para conquistá-lo, e eu, como não tinha muitas esperanças de que ele me escolhesse já que isso nunca acontecia, ajudei, e vi o casal se formar e ser feliz até os últimos dias de colégio.
Durante todo esse tempo, nunca recebi nenhum proposta de nenhum menino. Nem cartinha de admirador secreto. Convenci-me de que realmente não valho à pena o trabalho da conquista, ou pelo menos nunca vali para ninguém.
Na faculdade, depois de uns três anos sem me apaixonar por ninguém, porque eu já sabia como terminaria, eu resolvi dar uma nova chance ao amor. Havia uma friendzone entre nós, mas eu criei coragem e a rompi. Nossa amizade não foi destruída, mas nunca passou disso. Segundo ele, o problema não era eu, era ele que não estava pronto para um relacionamento. Estranhamente, ele arranjou uma namorada alguns meses depois. Mas eu já havia “desapaixonado”. Terminei por não sofrer. E também, já estava acostumada a ver dar errado para mim. Não foi nenhuma surpresa.
Nessa época, acho que presenciei a primeira vez que um garoto se interessou por mim, mas nunca tive certeza. Ele nunca foi muito direto e eu não sabia se era interesse ou apenas amizade.
Depois dessa na faculdade desisti. Resolvi nunca mais me apaixonar. Como isso fosse possível...
Mais uma vez me deixei levar. Só que dessa vez não fiquei sem fôlego, o coração não disparou e as mãos não suaram. Só consigo identificar que é paixão porque ele não sai dos meus pensamentos, estou sempre de olho em suas atitudes e às vezes eu gaguejo quando ele me dá atenção. É triste estar passando por isso. Já faz dois anos que começou. Sei bem aonde vai terminar. Em nada. Queria que fosse diferente, mas tenho quase certeza que não vai ser. 
Parece que meu destino não é ter um namorado. Não nasci para isso. Já não sinto meu coração bater. Quando penso nele tenho apenas uma dor no peito. Apesar de esse sentimento fazer eu me sentir viva, eu espero que isso logo se resolva. Como tiver que ser."
...
Bianca olhou para tudo o que tinha escrito. Ela tinha a esperança de que colocando o que sentia no papel se livrasse do peso de alguma forma. Ela dobrou delicadamente o papel, guardou dentro de um envelope e depois de lacrá-lo, colocou em um pequeno baú que ela enterrou aos pés de uma árvore dentre várias que havia naquela floresta. Sua esperança era que depois de alguns anos ninguém fosse capaz de encontrar os escritos. Nem ela mesma. E tudo aquilo fosse esquecido.

O Dilema do Cupido

Sentada de frente a uma pequena mesa em um aconchegante café, ela contemplava alguns casais enquanto bebia seu expresso sem açúcar coberto com creme. Não era uma mulher cujas características físicas chamassem atenção. Tinha altura mediana, era magra e seus cabelos castanhos caiam pelas costas.

Mas ela não era como as outras jovens. Apesar de sua forma, ela não era humana. Alice era um cupido.

Longe dos cupidos das histórias com bebês rechonchudos segurando um pequeno jogo de arco e flecha, ela, assim como seus colegas de “profissão”, tinha a aparência humana e compartilhava algumas de suas fraquezas.

O tilintar do sininho sobre a porta chamou a atenção de Alice. Sua amiga, de infância e profissão, acabava de entrar e se dirigiu até sua mesa depois de pedir um cappuccino à garçonete.

— Conseguiu terminar a missão, Alice?

Alice apenas concordou com um aceno de cabeça.

— Ah amiga, quando você vai se acostumar? É a nossa profissão.

— Não sei como você consegue Bianca.

— Você tem que parar de pensar em você. Só assim vai conseguir terminar bem um trabalho.

A garçonete trouxe o cappuccino de Bianca.

— Obrigada —agradeceu ela antes da mulher ir embora. Bianca bebeu um pouco do cappuccino e continuou. — Você precisa parar de procurar um namorado. Sabe que somos poucos e temos muito trabalho. A chance de você encontrar um cupido solteiro e afim de um relacionamento é bem pequena.

Alice deu de ombros.

O que a deixava aborrecida nesse trabalho era como ele acontecia. Não era difícil, mas para Alice estava sendo cada vez mais doloroso. Isso porque um cupido precisa primeiro se apaixonar pelo humano que irá “flechar” e depois apresentá-lo a alguém.

Com a presença do cupido é certo que o par acabe se apaixonando e o cupido termina de coração partido, “segurando vela” para mais um casal apaixonado. No entanto, se um cupido tentar levar adiante o romance com um humano, fatalmente terá problemas.

Como o cupido possuiu poderes, se apresentar uma pessoa ao seu parceiro ou parceira humana, essa ficará instantaneamente apaixonado e o relacionamento termina em sofrimento.

O cupido só pode se entregar ao amor caso encontre outro cupido interessado. Dessa forma ambos perdem os poderes de cupido, e os privilégios, e passam a viver como humanos.

— Alice, nós temos uma vida confortável garantida. Temos bons apartamentos para morar, roupas de qualidade, tudo o que quisermos comer e dinheiro para gastar nas nossas missões. Tudo bem que a gente bem que merecia um pouco mais...

Alice sorriu.

— Que cupido vai querer abandonar isso? — Bianca continuou. — Nem mesmo você vai querer ficar sem seu chá de Morangos do Algarve.

Alice sorriu — talvez você esteja certa. Eu só queria ser assim como você e me recuperar da paixão tão rápido.

— Com o tempo você vai conseguir. Você vai ver — Bianca incentivou. — Bem, agora tenho que ir. Você já completou a sua missão, mas eu ainda vou acompanhar o novo casal que eu formei em uma festinha — ela terminou o cappuccino.

— Também já vou. — Alice terminou o café e as duas seguiram para o prédio onde moravam se despedindo assim que saíram do elevador.

Alice entrou em casa. Havia apenas quatro apartamentos por andar e eles eram espaçosos e confortáveis. A jovem cupido morava ali desde que começara a realizar seus trabalhos aos 20 anos.

Durante a adolescência, Alice, assim como qualquer outro cupido, sabia que era diferente das outras pessoas, mas só quando recebeu a visita de alguém que a explicou o que ela realmente era, tudo começou a fazer sentido. Todas as paixões haviam sido platônicas e cada vez que mais um casal se formava em seu ciclo de amigos, ela se sentia deixada de lado.

Hoje ela já estava mais conformada com a situação e, apesar de tudo, ficava feliz por ter o poder de fazer as pessoas se apaixonarem umas pelas outras.

Ela colocou a bolsa que carregava na bancada da cozinha e sorriu ao ver a caixa com os sachês de chá de Morangos de Algarve. Ela havia feito a encomenda pela manhã ligando para o escritório central dos cupidos, e o pedido havia sido deixado em seu apartamento como de costume.

Alice preparou o chá e se sentou no sofá, de tecido negro e preenchimento de silicone, que Bianca a havia feito escolher de um catálogo quando montava o apartamento. Acompanhada de Aslan, seu gato siamês, ela ligou a televisão para assistir seu seriado favorito.

Bianca entrou em casa. Seu apartamento tinha o mesmo padrão sofisticado do de Alice e ficava a apenas uma porta de distância. As duas eram as únicas cupido do prédio, talvez do bairro. Ela seguiu direto para o banheiro e preparou a hidromassagem para um banho de espuma. Ela também tinha um gato, mas Wuffy, um persa branco, dormia preguiçosamente sobre sua cama. Bianca colocou um CD de música clássica para tocar e entrou na banheira. Ela ainda pensava na rápida conversa que tivera com Alice. Apesar de ver o sofrimento da amiga, tudo o que ela mais queria era manter-se apaixonada.

Embora tivessem o mesmo tempo de profissão, depois de passar por tantas desilusões amorosas, o que significava que facilmente os cupidos chegavam aos vinte anos sem nunca terem namorado ou sequer beijado ninguém, a maioria perdia a capacidade de se manterem apaixonados por muito tempo. Esse era o dilema do cupido.

Faziam as pessoas se apaixonar, mas não conseguiam sentir-se atraídos por alguém por tempo suficiente para tentar conquistar a pessoa por quem haviam se apaixonado. Eles simplesmente perdiam o interesse e corriam o risco de serem traídos pela influência que seus poderes exerciam.

Apesar de tudo, os cupidos geralmente não abandonavam a profissão. Recebiam toda espécie de apoio de uma central que eles apenas imaginavam onde poderia ficar. E eles sabiam de sua importância. Sem os cupidos o mundo estaria com os dias contados. Sem a paixão para inspirar as pessoas, o amor encontraria dificuldades para se manifestar. E sem o amor, o mundo pereceria em guerras.