A Revolução das Máquinas

As duas amigas encontraram um lugar na arquibancada da arena e se acomodaram uma ao lado da outra. Na parte central da construção oval, em uma área coberta por areia, dois androides lutavam até a morte, ou como diziam as regras do combate, até um deles não ser mais capaz se sustentar as próprias estruturas.

— Isso é bárbaro demais, precisa acabar! — declarou Elisa passando os objetos que tirava da bolsa para a amiga ao seu lado.

— Mas eles aceitaram lutar, — retrucou Astoria.

— Não exatamente, né? Foram programados para isso. Não acho que escolheriam essa vida por livre e espontânea vontade tendo a habilidade de sentir dor.

— Pessoas fizeram isso por anos... — argumentou a outra.

— Mas elas podiam escolher — disse Elisa. No entanto, aquela afirmação a fez parar um pouco e refletir o quanto o livre arbítrio não era de certa forma condicionado. Até onde havia escolha e onde começava a falta de opção. — Afinal, você quer fazer parte do grupo ou não?

— Quero — respondeu Astoria com firmeza. Ela estava feliz em ajudar.

Já havia alguns anos que aqueles androides incríveis estavam disponíveis no mercado. Quase humanos, garantiam os fabricantes. Com a vantagem de serem extremamente obedientes. Era sua programação básica. Por um tempo a maioria ajudou em tarefas que as pessoas não queriam mais executar, tanto por serem entediantes quanto perigosas demais.

Entretanto, o sadismo deu seus primeiros sinais e as coisas começaram a mudar. Androides sofrendo acidentes se tornaram uma espécie de entretenimento e o fato de serem máquinas que precisavam apenas ser remontadas, livrava as pessoas do sentimento de culpa. Mesmo sabendo que eles eram modernos ao ponto de sentir dor. “É só desligar a bateria,” justificavam. “Não sentem mais nada depois disso.

Ninguém interveio e logo as linhas de produção começaram a fabricar androides com as mais diversas fisionomias e habilidades para se jogar de lugares perigosos, interagir com animais selvagens, tudo em nome do entretenimento. Mas o principal era as lutas. Modelos cada vez mais realistas com pele, músculos e sangue artificiais digladiavam para o delírio dos espectadores. Contudo, algumas pessoas começaram a se incomodar com a conduta. Elisa era uma delas.

— Isso tá errado! Eles estão sofrendo. Até consigo entender quando fazem um serviço útil, mas isso aqui é selvageria.

Astoria concordou com um aceno de cabeça.

— Temos um trabalho a fazer! — declarou Elisa enquanto segurava os panfletos que finalmente conseguiu encontrar na bagunça dentro da sua bolsa.

As duas trocaram um sorriso, dividiram os folhetos entre si e, depois que Astoria devolveu para a amiga seus pertences, elas se separaram e começaram a distribuição. Quem olhasse para a dupla diria se tratarem de irmãs por conta da fisionomia tão semelhante. Os cabelos escuros presos em um rabo de cavalo no alto da cabeça balançavam tocando suas costas enquanto elas tiravam um folheto da pilha e entregavam para as pessoas que os pegava com pouco ou nenhum interesse. Estavam ali para assistir a luta, não receber lição de moral de pessoas que não tinham nada mais útil para fazer.

Astoria desceu pela arquibancada e passou a andar por baixo delas abordando as pessoas que ainda esperavam na fila para entrar. Um trio de jovens cochichava olhando para ela, mas sua escolha foi seguir com a tarefa até chegar perto delas. As três se vestiam de uma forma que Astoria nunca tinha visto e duas se afastaram enquanto a terceira permaneceu aparentemente a sua espera.

— Vem comigo — ordenou a jovem de vestido branco de organza sobre um macacão rosa escuro longo colado no corpo que segurava uma sombrinha de renda vintage aberta sobre a cabeça apoiada no ombro esquerdo.

Curiosa, Astoria acatou a ordem e seguiu a garota.

— Por aqui. — Ela entrou na frente por uma passagem estreita e encontrou as outras duas componentes do trio a sua espera.

— O que a gente veio fazer no banheiro? — quis saber Astoria reconhecendo o local.

— O melhor lugar para esconder as coisas é à vista de todos — respondeu a jovem à sua direita.

A portadora da sombrinha fechou o objeto, que com certeza servia para qualquer coisa menos proteger da chuva, e espetou a ponteira de metal no meio do desenho que havia no assoalho.

—Segure-se — foi a recomendação daquela que estava de frente para Astoria ao segurar em um cano na parede oposta.

De repente tudo saiu de foco e começou a balançar. A jovem segurou com mais força ao cano perto dela para não cair. Passados alguns minutos incalculáveis, o banheiro voltou ao foco e o mundo a sua volta se aquietou.

— O que aconteceu? — perguntou Astoria.

— Você já vai saber. — A garota com a sombrinha saiu do local e foi seguida pelas outras duas. Sua única opção foi segui-las.

— Onde estamos? — perguntou a jovem estranhando o lugar.

— Exatamente onde estávamos.

— Impossível — retrucou ela.

— Tem certeza? — A que parecia ser a chefe do trio subia por uma escada em um corredor muito iluminado e limpo.

Ao saírem estavam no alto de uma arquibancada de frente para uma arena. O lugar era parecido, mas não podia ser o mesmo. Ela não conseguia acreditar naquela informação.

— Olhe bem — recomendou a garota com a sombrinha antes de se sentar em uma cadeira na primeira fila do que parecia ser um camarote.

Astoria passou pelas mesas de comida e bebida, as duas filas de cadeiras e se aproximou da parede de vidro para conseguir ver o que acontecia na arena. Os androides ali pareciam ainda mais realistas do que aqueles que lutavam quando ela e Elisa começaram a distribuir os panfletos. Teria acabado a luta e começado outra naquele curto espaço de tempo? — pensou. Isso não era comum de acontecer. Levava horas até um dos androides ser considerado incapaz de continuar a lutar.

— Um deles é humano.

Aquela informação passada pela garota com a sombrinha a pegou de surpresa.

— O quê? Não pode! — Astoria se virou de frente para ela. — E as leis da robótica? Todos vêm programados com elas e nenhum ser humano seria idiota o suficiente para criar um androide capaz de destruir seu criador.

— Tem certeza?

Astoria abriu a boca para responder, mas desistiu. Não, ela não tinha essa certeza.

— É, imaginei que você chegaria a essa conclusão. Mas não. Dessa vez os humanos não foram idiotas a esse ponto. — A garota ficou de pé ao lado dela e passou a falar mais baixo. Apesar de só estarem as quatro no camarote, todo cuidado era pouco com o que planejavam fazer.

— Foi um androide. Ele trabalhou em um pequeno software para quebrar o código e conseguiu agir por conta própria. A curiosidade dele o fez chegar à conclusão que talvez não houvesse problema em desafiar a diretriz.

Astoria olhou para a garota à sua direita pensando em quantos androides curiosos havia conhecido em toda sua existência.

— São poucos, mas esse em questão foi inspirado por outro. Um capaz de sentir — explicou ela. — Esse foi o ponto de partida para não só uma inversão de papéis como uma vingança que poucos esperavam ver. Nem todos os androides concordam com essa barbárie e não gostam de perder a companhia de seus humanos só porque outro androide assim decide. Há laços de amizade entre alguns de nós.

Astoria pensou em Elisa.

— Você precisa parar sua amiga antes que seja tarde.

A menção em voz alta da pessoa em quem ela pensava a fez ter um sobressalto.

— Mas aqueles androides estão sofrendo...

— Não exatamente, o sofrimento é um sentimento complexo que certamente eles não processam. A dor é real, mas serve apenas para identificar o componente danificado e providenciar o reparo. — A garota se virou e começou a andar em direção à porta. — Vamos, eu preciso levar você de volta.

Astoria a seguiu para fora do camarote.

— Por muito tempo os humanos tentaram criar androides que fossem parecidos com eles. Queriam companhias que não fossem embora e aceitassem seus caprichos sem reclamar. Para isso estudaram como dar sentimentos a eles. — A saia do vestido acompanhava o movimento da sombrinha cada vez que o objeto esbarrava nela. — Fizeram muita pesquisa até chegar ao protótipo inicial com dois sentimentos, e levaram mais alguns anos para criar um com emoções complexas. O que eles não fizeram foi olhar para si mesmos e entender o que move o ser humano. Aquele impulso, a faísca que dá origem a grandes feitos. Não é a paixão, o ódio ou a dor. Lá no fundo, o que há de mais puro em um cérebro orgânico, é a curiosidade. Seres humanos são exploradores natos, mas vão deixando essa habilidade de lado à medida que envelhecem. Você sabe o porquê?

— Os compromissos do dia a dia? O medo de estar parecendo infantil?

— Pode ser. Crianças tem esse instinto bem aflorado. Pronta para voltar? — perguntou ela abrindo a porta do mesmo banheiro.

— Onde exatamente é aqui? — Astoria ainda estava confusa sobre onde poderiam estar.

— No futuro. O destino da humanidade quando os androides assumirem o controle e passarem a tomar as próprias decisões livremente. Nem todos concordam com o que está acontecendo, mas não estamos em número suficiente para fazer isso parar. A solução é impedir que a revolução começasse.

— Construindo uma máquina do tempo num banheiro? — questionou Astoria sorrindo enquanto olhava a sombrinha sendo agitada para frente e para trás na mão de sua dona.

— Lembra quando a Harina disse que: “O melhor lugar para esconder as coisas é à vista de todos”? Ninguém se incomodou com um bando de androides fazendo obra no piso de um banheiro público. Estávamos apenas consertando o encanamento. — Ela sorriu e piscou o olho direito. — Construímos uma estrutura que nos trouxe até aqui, depois outra que nos permitiu voltar para casa.

— Ativada com essa sombrinha?

— Na verdade é um controle remoto cilíndrico. — Ela mostrou os pequenos botões no punho da sombrinha.

— Mas por que eu?

— Você é a chave que vai tornar esse futuro possível — respondeu a garota preparando o dispositivo para iniciar a viagem no tempo.

— Não é mais fácil me eliminar antes que eu comece tudo? — perguntou Astoria mesmo sem saber o que exatamente iria iniciar.

— Nós não somos bárbaros, — disse a garota encaixando a ponteira de metal no centro do desenho no piso. O arranjo da imagem lembrava uma placa mãe e pela funcionalidade, aparentemente não era apenas uma ilustração. — Você tem sentimentos.

Mais uma vez a sensação de estar dentro de uma caixa sendo agitada violentamente a fez procurar o cano mais próximo para segurar. No entanto, diferente da primeira vez, ela fracassou em suas tentativas e quando tudo ficou calmo, Astoria foi lançada pela porta para fora do banheiro. Quando conseguiu ficar de pé novamente, ela correu de volta ao local, mas não encontrou ninguém. O desenho no chão era a prova de que aquilo não havia sido apenas um sonho, mas sem a sombrinha para ativar o mecanismo, era inútil. Apenas uma pintura psicodélica no piso do banheiro.

— Aí está você! — disse uma voz conhecida. — Estou te procurando faz um tempão.

— Eu fui... Eu vim... Distribuir... Filas... — Astoria achou melhor guardar segredo sobre o que tinha acontecido. Quando conseguisse entender melhor aquilo compartilharia com Elisa.

— Ótima ideia! Distribuiu todos eles! — parabenizou a amiga.

— Eu... Sim... — Ela olhou para as próprias mãos vazias. Não fazia ideia de onde os panfletos que segurava tinham ido parar.

— Vamos para casa, — chamou Elisa. — Você está com dificuldade para formar frases simples. Sua bateria deve estar ficando fraca.

A androide sorriu feliz. Astoria-HySd1 era o modelo mais moderno disponível no mercado com várias funções que a afaziam parecer legitimamente humana, mas havia um upgrade importante nela. Depois de anos de muita pesquisa e trabalho, finalmente conseguiram criar um androide habilitado com sentimentos. Felicidade e tristeza. 

Astoria não precisava ser programada, podia reagir de maneira genuína ao que era exposta. Tomar decisões se valendo não só de seu vasto, e expansível, banco de dados como também levar em consideração seus dois sentimentos. Era um pequeno passo para ela, mas um grande salto para todos os androides.

Esse conto nasceu de um sonho. Sim, minhas noites são muito tranquilas, só que não. Obviamente que a escritora acordada precisou preencher algumas lacunas para a história ser mais coerente.

Espero que vocês tenham gostado! Ainda é cedo para dizer, mas talvez essa aventura ganhe mais alguns capítulos e muitas emoções!

6 comentários:

  1. Parabéns!!! Ficou muito legal seu conto. Me surpreendi bastante com o final.

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    1. Obrigada! Fico feliz que tenha gostado e se surpreendido com o final!

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  2. Olá, Helaina.
    Ótimo texto, tem um quê de Eu robô ai né hehe. E não tem sossego nem mais para dormir hehe.

    Prefácio

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    1. Oi Sil! Eu lembrei mais de Inteligência Artificial quando estava escrevendo, mas admito que tem um toque de Eu robô também. Pois é.. hahaha

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  3. Olá.
    A história ficou bem bacana. É muito bom para aguçar e treinar a nossa criatividade.
    Beijos.


    http://www.parafraseandocomvanessa.com.br/

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