O Bilhete

Dessa vez não trouxe apenas uma cena, mas sim um conto curto com início, meio e fim. Uma das personagens inclusive já apareceu aqui no blog. Estão prontos para a pequena aventura em numa casa abandonada?

***

A ‘Buscando Inspiração’ nasceu no final dos anos 1990 da ideia de uma fotógrafa entusiasta que decidiu fundar a empresa dando chance àqueles que ela tanto apreciava e a inspiravam. A CEO além de apreciar muito o ofício da fotografia também era escritora. Seu objetivo principal era reunir vários profissionais na agência e proporcionar o contado deles com os clientes, mas garantindo por conta da empresa o salário fixo e comissão por projeto. Os trabalhos incluíam toda sorte de fotografias, desde projetos para sites, folhetos, convites para eventos e os próprios eventos, colunas de jornais ou revistas e trabalhos para organizações, governamentais ou não.

Por conta dessa variedade, Beatrice e Manuela, duas fotógrafas da Buscando Inspiração, não estranharam quando receberam na manhã de sexta-feira a missão de fazer o registro de imagens do interior da casa há muito tempo abandonada em uma das principais avenidas na cidade sede da agência no interior de Minas Gerais.

— Pelo menos a gente não vai precisar viajar hoje — disse Manuela agradecida já visualizando o final do seu dia tomando cerveja num bar com os amigos.

— Com o calor que está fazendo, eu agradeceria se tivessem mandado a gente para um lugar frio, mesmo que longe — retrucou Beatrice saindo do prédio junto com a colega de trabalho.

As duas entraram no carro estacionado em frente ao edifício com Beatrice atrás do volante e Manuela no banco do carona ao seu lado conferindo todo o material que precisavam levar. Não era a primeira vez que as duas mulheres trabalhavam juntas no mesmo projeto e o acordo sobre quem dirigia o carro da agência era antigo.

Não que Beatrice amasse dirigir, e o trânsito daquela cidade de porte médio era ruim o suficiente para estressar qualquer um, mas ela achava bem pior conferir o material para os trabalhos com o coração quase parando sempre que imaginava ter esquecido algo. Manuela encarava a tarefa com muito mais tranquilidade.

A realidade é que não havia muito que esquecer. Elas precisavam das câmeras, da lista com o que seria fotografado e, dependendo de onde iam lanches, água e cartões de memória extras. Tudo fornecido pela agência. Apenas itens de uso pessoal como protetor solar e repelente ficava por conta dos profissionais caso achassem necessário levar.

— Eu sempre quis entrar nessa casa! — declarou Beatrice quando desligou o carro já dentro da garagem da construção.

— Você não é muito normal, é? — brincou Manuela com um sorriso no rosto enquanto passava pela colega.

— E quem é? — respondeu Beatrice fingindo que aquilo não a havia machucado.

Era uma interação tão comum dos outros com ela, que o aperto que sentia no peito ao ouvir aquilo lhe causava certo espanto. Já deveria ter se acostumado a ser a mulher estranha do grupo.

— Pega a chave pra mim? — pediu Manuela indicando o bolso externo da mochila em suas costas enquanto as duas atravessavam o jardim malcuidado.

Para a entrada do carro foi necessário apenas remover uma corrente, mas para ter acesso ao interior do imóvel havia uma porta de madeira sobreposta por outra com finas barras de ferro. Grades também cobriam cada uma das janelas da casa de dois andares e nem mesmo o pequeno basculante redondo do sótão escapava da proteção. Definitivamente, ao contrário do que podia pensar Manuela, a colega não era a única pessoa da cidade com curiosidade suficiente para querer ver o local por dentro.

No entanto, aquela pequena realização seria possível apenas para a fotógrafa e a satisfação estava estampada no seu rosto assim que ela entrou na casa depois de destrancar as duas portas. Ao seu lado, Manuela reclamava da poeira, do cheiro de mofo, da pouca luz por conta da impossibilidade de abrir as janelas e, sobretudo do calor dentro da casa.

— Nós vamos derreter aqui dentro — reclamou a mulher tirando a jaqueta. — Você não está com calor?

A pergunta fez Beatrice parar de apreciar o ambiente abandonado e misterioso que a cercava e prestar atenção na colega. Claro que estava quente, mas não o suficiente para arregaçar as mangas da camisa.

— Não, o tecido dessa blusa é leve, e, além disso, você mesma reparou a sujeira aqui dentro, não quero correr o risco de terminar com uma dermatite de contato.

— Um bom ponto! — concordou Manuela passando a refletir se deveria ou não colocar de volta a jaqueta.

— Vou pegar dois kits de iluminação no porta-malas e uma lona pra gente forrar o chão e não sujar nossas coisas.

Beatrice caminhou para fora da casa ansiosa para poder voltar logo e começar a trabalhar. Enquanto pegava o que precisava dentro do veículo, seu celular vibrou. Era uma mensagem de Miguel com uma única palavra: “sortuda”. Ela sabia que o amigo gostaria de estar ali, muito mais do que a outra fotógrafa, mas ele estava em um projeto grande com outros três profissionais numa cidade próxima fotografando pontos turísticos para compor o novo site da prefeitura. Beatrice apenas respondeu com a frase: “vou fazer umas imagens para você” e guardou o aparelho no bolso da calça jeans.

— Acha que fica muito escuro se eu trancar a porta de madeira? — perguntou ela depois que entregou os objetos para colega.

— Melhor o escuro do que os curiosos inconvenientes — respondeu ela com um sorriso.

Beatrice concordava completamente com ela e a realidade é que o ambiente estava bem mais iluminado depois da porta fechada porque Manuela já havia ligado dispositivo de LED portátil acoplado sobre a câmera que iria usar.

A lista de fotos era extensa e cheia de pedidos por imagens específicas. O trabalho havia sido encomendado por uma organização de preservação histórica da cidade e eles queriam começar um projeto para recuperar a casa e transformá-la em um espaço cultural.

As mulheres se dividiram na tarefa e mesmo não achando muito interessante a princípio, a empolgação de Beatrice contagiou Manuela e o trabalho foi tudo, menos estressante. O sobe e desce de escadas, a procura pelo melhor ângulo em cada cômodo e o ar que respiravam sempre com um cheiro estranho, as deixou exaustas.

Quando terminaram, Beatrice resolveu cumprir a promessa que havia feito a Miguel e começou a tirar várias fotos com o celular. Apesar de saber que não poderia compartilhá-las em nenhum lugar, pois estavam em uma propriedade privada cumprindo um trabalho encomendado, nada a impediria de guardar aquelas imagens no computador pessoal, e é claro, na memória.

— Sério, Beatrice? — questionou Manuela balançando a cabeça em negativa sentada no chão sobre um pedaço de lona no andar térreo consumindo todo o conteúdo de uma garrafinha pequena de água.

— O Miguel também queria saber como é aqui dentro — respondeu ela de forma inocente.

Um sorriso irônico surgiu no rosto da mulher — por que vocês dois não assumem logo o namoro?

— Por que não estamos namorando — Beatrice sentiu um aperto no peito ao responder aquilo, não por querer aquele relacionamento com o amigo, mas sim por já saber que as pessoas nunca aceitariam aquela resposta.

Como se amizade fosse um tipo de relacionamento menos importante, com menos amor envolvido.

— Eu no seu lugar não deixaria escapar — aconselhou Manuela confirmando para Beatrice que não valia à pena entrar em uma discussão sobre meta de relacionamento.

A mulher conhecia a própria sensibilidade e apenas sorriu de volta antes de subir as escadas para o andar superior quando percebeu que, apesar de não querer debater o assunto, seu corpo quereria mostrar com lágrimas o quanto estava cansado de ouvir aquela forma de pensamento e implorava por uma atitude.

Alguns minutos depois, mais controlada e já com várias fotos do local em seu celular, Beatrice resolveu fazer também um vídeo. Não era algo que ela e o amigo fossem muito fãs, mas aquela casa merecia todo tipo de registro. Mal podia esperar até a restauração ser concluída para fazer uma visita, apesar daquele estado abandonado e misterioso a encantar profundamente.

Levou alguns anos até Beatrice entender o motivo de ruínas a atraírem tanto, mas por fim ela entendeu que se identificava com aqueles locais que mesmo com todas as adversidades e falta de apoio se mantinham de pé.

Algo chamou sua atenção enquanto filmava. Sem parar o vídeo ela se aproximou de uma das janelas e tirou o papel com fita adesiva preso nela, intrigada por não havia percebido a presença daquilo antes. No bilhete apenas uma palavra: “Corra”.

— Manuela! — gritou pela colega antes de parar a gravação.

— O que foi, mulher? — perguntou ela quando chegou quase sem fôlego ao topo da escada.

— Foi você quem pendurou isso aqui — era a dedução de Beatrice.

Só havia as duas na casa, não tinha ouvido qualquer barulho além do delas, então definitivamente estavam sozinhas. Manuela se aproximou, pegou o papel e analisou de perto.

— Não fui eu não, eu juro — a mulher negou com o papel na mão. O medo que apareceu em seus olhos comprovava sua sinceridade. — Eu vou é dar o fora daqui!

Sem se importar em deixar o bilhete cair no chão, Manuela o soltou e correu escada abaixo se apressando para juntar todo o material e deixar a casa como estava antes de elas entrarem. Beatrice riu com o medo da colega, apesar de não conseguir esconder o nervosismo por não saber o que estava acontecendo, pegou  o bilhete do chão e o guardou no bolso para analisar mais tarde, antes de seguir para ajudar a outra mulher.

Sem mais contratempos, as duas colocaram todo o material no carro e voltaram para a agência depois de sair e trancar a casa. Ainda assustadas com o que havia acontecido, as fotógrafas não conseguiram explicar o estado que estavam justificando ser apenas cansaço pelo dia de trabalho. Manuela seguiu para encontrar com os amigos no bar, sem deixar de convidar Beatrice que recusou por não gostar daquele tipo de ambiente pela quantidade de gatilhos que disparava nela. Preferia ir para casa tomar um banho relaxante e assistir alguma série.     

Quando já estava cansada demais para manter os olhos abertos, Beatrice decidiu ir para a cama. No entanto, antes que pudesse desligar a TV, tudo ficou escuro. Levou exatamente um minuto para as luzes voltarem a acender.

— Boa noite e boa sorte — disse o homem do telejornal aleatório que estava terminando como se soubesse o que estava acontecendo.

A mulher engoliu em seco e tirou o aparelho da tomada antes de verificar cada cômodo da casa para se certificar que estava sozinha. A ideia de que alguém havia invadido a casa, durante um blackout de um minuto sem fazer qualquer barulho com tudo trancado, a fez rir da tensão que estava sentindo desde o encontro do bilhete na casa abandonada.

Enquanto se preparava para dormir, Beatrice o olhava sobre a cômoda imaginando qual a graça de tentar pregar uma peça em alguém que você nem ao menos saberia se iria se assustar. Chegou a pensar em publicar a foto dele em seu perfil de fotos pessoais, mas aquilo também fazia parte da casa, e a cláusula no contrato sobre a não divulgação de imagens de locais privados era bem específica.

Aquela lembrança fez a mulher ficar com medo se sofrer algum tipo de punição por ter trazido o bilhete para casa. Decidiu que na segunda-feira o levaria para a agência e deixaria guardado lá, assim, se alguém desse falta era só devolver.

O cansaço foi aos poucos pesando suas pálpebras e o sono quase dominava quando um som a despertou causando um sobressalto. Beatrice ouviu com nitidez uma voz sussurrando “corra” na escuridão do quarto, mas tinha certeza de que estava sozinha. Dessa vez ela não se levantou para verificar a casa, pois não era a primeira vez que sua imaginação a fazia ouvir algo. Só podia ser isso. Estava se deixando levar por uma fantasia sobrenatural graças a tantos clichês do gênero que já havia assistido.

(...)
5 anos antes

Aproveitando a escuridão da noite como camuflagem, os três garotos estavam ansiosos para saciar a curiosidade e ver o que de fato havia dentro daquela casa dita mal-assombrada. A lenda contava que o imóvel estava abandonado, sem proprietário e que barulhos estranhos podiam ser ouvidos da avenida em frente. Muitas pessoas inclusive evitavam passar perto dela.

No entanto, para a decepção dos adolescentes, o local não era nada além de uma casa abandonada, suja e sem nenhum atrativo para eles. Consideraram perda de tempo o risco que correram com a invasão e estavam se sentindo ingênuos por terem acreditado que houvesse algo sobrenatural para ser visto ali.

— Tive uma ideia! — disse um deles rindo. — Vou deixar esse bilhete na janela. Quem entrar aqui e ver isso vai surtar! — ele tirou uma caneta e um pedaço de papel do casaco que usava desde a manhã na escola e escreveu uma única palavra.

Os outros dois deram gargalhadas que ecoaram pela casa a muito abandonada e sem vida em seu interior.

— Cola com isso aqui — sugeriu um deles tirando um rolo de fita adesiva do bolso.

— De onde veio isso? — perguntou o que escrevia.

— Tava lá embaixo no corrimão da escada.

Os três trocaram olhares um pouco confusos sem querer admitir em voz alta a primeira ideia que cada um havia cogitado. Que a casa era realmente assombrada. Decididos a sair logo dali, o garoto colou o bilhete no vidro da janela e os três deixaram o local para nunca mais voltar.

Pequenas invasões como aquelas eram frequentes, e geralmente sem prejuízos significativos, mas para evitar que algo acontecesse, os proprietários resolveram reforçar a segurança. Colocaram grades sobre as portas, da frente e dos fundos, e também em cada uma das janelas da casa de dois andares. Nem mesmo o pequeno basculante redondo do sótão escapou da proteção.

O bilhete, no entanto, passou despercebido por todos que estiveram ali e ficou esquecido por muito tempo até um olhar mais observador notar sua presença. Sem parar o vídeo Beatrice se aproximou de uma das janelas e tirou o papel com fita adesiva preso nela, intrigada por não havia percebido a presença daquilo antes. No bilhete apenas uma palavra: “Corra”.

Acho que toda cidade tem uma casa antiga que vários moradores gostariam de saber como é por dentro, mas nunca tiveram a sorte de então, não? Na minha existia, e foi nela que me inspirei para escrever esse conto. Infelizmente a casa não foi restaurada e sim demolida para dar lugar a um edifício. Nunca a vi pelo lado de dentro, mas assim como Beatrice, gostaria muito de ter tido essa oportunidade.

Gostaram da história? Tentei trazer algo com mais suspense por conta do mês de Outubro, mas acho que no dia que eu escrever uma história de terror que realmente me assuste não vou ter coragem suficiente para revisar. Eu amo o gênero, mas nada consegue controlar minha imaginação. Nem eu.

6 comentários:

  1. OIe Helaininha!

    Gostei do texto!!! Eu prefiro assim, que fica aquele suspense no ar - sou meio medrosa então pra mim ta otimooo assim rsrsrsrs
    Gostei da foto que deu ligação com o texto e SIMMM aqui também tem essas casas!
    adorei a ideia! Fiquei inspirada a escrever rrsrsrsrs

    Beijos!
    Pâm
    Blog Interrupted Dreamer

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    1. Oi Pâm!

      Hahaha.. que bom que gostou! No Halloween não resisto a um texto de terror, ou pelo menos eu tento.
      Eu ia tirar com o papel colado na janela, mas achei melhor não... haha... Acho que toda cidade tem uma casa assim, né?!

      Beijos;

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  2. Amei ver aqui um conto com final hahahah, eu fico ansiosa e querendo saber sempre a continuação da história, gostei muito desse formato.
    beijos.


    https://www.parafraseandocomvanessa.com.br/

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    1. Oi Vanessa,

      Fico feliz que tenha gostado. Vou tentar fazer mais contos assim, mesmo que usando personagens cuja história continua.

      Beijos;

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  3. Oi Helaina.
    Menina que já me subiu uns calafrios só de ler kkk.
    Sou muito medrosa o máximo que consigo é um suspense de leve.
    Na rua da minha antiga escola tinha uma casa que tinha inúmeras teorias e todas elas me causava calafrios haha
    Beijos
    Blog|Te Conto Poeisa


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    1. Oi Camila,
      Hahaha... confesso que também me sinto assim enquanto escrevo.
      Eu adorava essas histórias quando era criança, na verdade ainda gosto bastante!

      Beijos;

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