O soldado ferido

Coincidências, eu nunca acreditei nelas. Mas não tenho como explicar as coisas que aconteceram na minha vida senão a mais pura coincidência. Bom, eu poderia também acreditar que há uma força invisível no universo puxando todas as cordas, mas nesse caso, acho mais fácil acreditar em coincidências.

Tudo começou quando eu voltei da guerra. Aposentado por invalidez por conta de um ferimento na perna, desamparado pelos meus pais, não que eu tivesse coragem de recorrer a eles depois de tudo o que me fizeram, e sem condições de me manter na cidade. Não queria me afastar de Londres, mas minha situação financeira me obrigaria a fazer isso em breve. A menos que eu conseguisse encontrar alguém com quem dividir um apartamento. E foi exatamente em uma sucessão de coincidência que me fez encontrá-lo novamente.

— Espero que não se incomode com o violino e com o fato de eu ficar em silêncio por dias enquanto estou trabalhando. Experimentos científicos também podem acontecer na cozinha de vez em quando… — William começou a falar pouco depois que eu entrei no laboratório onde me disseram que eu poderia encontrá-lo dentro do Hospital St. Michael.

— Você não lembra mesmo de mim? — perguntei surpreso. Ele estava mais alto, mais pálido e magro, provavelmente exagerando um pouco com as drogas… Talvez Zephy não estivesse na cidade para cuidar dele ou quem sabe não estaria casada e morando em outro país.

— Eu não costumo esquecer um rosto, — o homem me encarou. — Nope. Acredito que nunca nos vimos antes.

— William, seu café — declarou uma mulher entrando no laboratório.

— Obrigado, amor — disse ele pegando o copo descartável e tocando os lábios dela com os seus.

Mais uma coincidência para a lista. A paixão de William bem ali na minha frente e aparentemente ele havia conquistado a moça. Imaginei se Victor ainda estava no grupo de amigos ou decidira ir embora.

— Molly Sears! — meu tom de voz não escondia a surpresa. — Sou eu, John Maddens. Sei que não éramos íntimos nem nada, mas nos vimos algumas vezes na casa do William — apontei para o homem que, pela reação dos presentes, eu não deveria conhecer.

— Nunca vi ninguém parecido com você na casa do William — disse ela sem me encarar. — Com licença, preciso fazer uma coisa que eu esqueci.

Eu tinha certeza que ela não havia esquecido e só estava tentando sair antes que eu fizesse mais perguntas.

— Interessante — declarou William sobriamente. — Há certamente alguma coisa acontecendo aqui e duvido que haja um sósia meu andando por aí. Como você disse que se chama?

— John Maddens — respondi.

— Tenho certeza que nunca ouvi falar de você. — Por um momento achei que perderia meu colega de apartamento antes mesmo de ter um, mas ele parecia mais interessado do que assustado com tudo que estava acontecendo. — Tem mais alguém que eu deveria conhecer?

Engoli em seco quando o nome dela passou em minha mente. Comecei a ficar em dúvida se deveria revelar para ele ou não. Por fim decidi não esconder nada, afinal eram irmãos, e deviam saber um dos outros.

— Wendy, — comecei pela irmã mais instável dos quatro e dei um tempo para ele pensar, analisando a expressão de William. Nenhum reconhecimento. — Zephyrus — quando o nome dela saiu da minha boca, meu coração disparou. Como eu queria vê-la novamente.

— Que tipo de nome é esse? — Ele riu zombando.

Aquilo me fez fechar o punho com raiva, mas preferi ignorar.

— Alexander — continuei falando.

Agora sim uma reação de reconhecimento. William parou de rir e me olhou um pouco mais sério.

— É um nome comum, e por coincidência é o nome do meu irmão — declarou ele. — Essas outras duas pessoas que você falou, tem relação próxima comigo?

— São suas irmãs mais novas.

— Ai está sua resposta! — Ele bateu uma palma contra a outra. — Você está errado. Eu não tenho irmãs! Está me confundindo com outra pessoa. Caso resolvido!

Eu não sabia mais o que dizer. Não estava errado, mas não tinha ideia de como convencê-lo disso. Comecei a ficar com medo de que algo trágico pudesse ter acontecido com as gêmeas naqueles dois anos em que eu estive ausente. Trágico o suficiente para William se esquecer delas e Zephy se esquecer de mim.

Aceitei dividir o apartamento com ele. A localização era boa, o valor do aluguel não pesava muito no meu bolso e assim que eu conseguisse arrumar um emprego tudo ficaria ainda melhor. Eu só não conseguia tirar da cabeça a vontade de saber o que havia acontecido com Zephy. Tentei conversar a sós com Molly algumas vezes, mas ela continuava me evitando.

Pensei em entrar em contato com Alexander, ele era mais velho e provavelmente tão estável quanto meu antigo amor, mas sabia que trabalhava para o governo, então não seria fácil conseguir um horário para conversar com ele. Foi aí que o destino me ajudou mais uma vez. Eu estava saindo do apartamento para procurar emprego quando notei um carro preto parado na frente da porta. O vidro da janela de trás abaixou lentamente e uma bela jovem chamou meu nome. Por alguns segundos eu imaginei que poderia ser ela, mas me decepcionei ao ver um rosto belo, porém estranho.

— Posso te levar até quem tem as respostas — disse a mulher. — Mas precisa se decidir rápido. Ele não tem o dia todo.

Ignorando completamente minha segurança e sedento para saber o que estava acontecendo aceitei a carona. Eu vi Alexander mais em fotos do que pessoalmente. O homem, pelo que os irmãos contavam, trabalhava para o governo e não tinha muito tempo para estar com a família, mas a semelhança dele com o William era inquestionável. Não fossem os cabelos grisalhos, os quilos e os anos a mais, poderia tranquilamente dizer que eles eram gêmeos idênticos, diferente das meninas, gêmeas fraternas.

— Por favor, sente-se — disse ele sem me cumprimentar quando fui conduzido até sua sala no décimo andar de um prédio no centro de Londres. Pelo luxo deduzi que ele deveria ser de um alto escalão de comando. — Aceita alguma coisa para beber?

— Não, obrigado. — Mesmo lendo o nome Alexander McMillan na placa fixada do lado de fora da porta, decidi que já havia me arriscado o suficiente naquele dia entrando em um carro desconhecido só porque alguém me chamou pelo nome e me ofereceu respostas. Apenas sentei na cadeira acolchoada do outro lado da mesa onde ele mesmo estava acomodado.

— Então eu vou direto ao ponto, porque não tenho tempo para desperdiçar — declarou o homem. — Nunca mais toque nos nomes de Wendy Eurus e Audrey Zephyrus se quiser continuar andando livre por aí.

A revelação me atingiu como um raio. Então eu não estava errado, nem ficando louco. Eles eram mesmo quem eu pensava que eram.

— O que aconteceu com a Zephy? — perguntei sentindo uma onda de desespero se espalhar pelo meu corpo. — Eu não vou simplesmente desistir dela sem saber o que aconteceu.

Alexander cobriu os olhos com uma das mãos e suspirou. Deve ter percebido pelo meu tom de voz que se eu não obtivesse algumas respostas, não ignoraria a existência dela. Zephyrus fez tanto por mim, merecia muito mais do que ser apagada da memória de todos.

— Ela foi sequestrada, alguns meses depois que você foi mandado para o Afeganistão, e mesmo com todos os esforços, pessoal disponível e serviço de inteligência, nunca conseguimos encontrá-la. Os raptores também nunca entraram em contato para negociar.

Engoli em seco e precisei conter as lágrimas, pois não esperava um golpe como aquele. Na verdade, nem sei o que eu esperava com a situação que eu encontrei.

— E a Wendy? — perguntei realmente interessado, pois agora queria saber de tudo sobre os irmãos.

— Está em uma prisão de segurança máxima.

— Qual o crime?

— Assassinato de Victor Hale — pela entonação de Alexander ao contar a história, para mim estava claro o quanto por trás daquela frieza havia um coração ferido. — William estava cada vez mais triste com o envolvimento dele com Molly e não conseguia esconder. Principalmente porque ela não decidia com quem queria ficar, — ele levantou a mão direita para me impedir de interrompê-lo. — Mas não estou de forma alguma querendo culpá-la pelo que aconteceu, e nem acho ruim que os dois estejam juntos atualmente. Nós somos os culpados por ter ignorado a gravidade dos acessos violentos da Wendy.

— A Molly também fingiu que não me conhecia quando a encontrei…

— Logo depois do assassinato de Victor, o pai dela ficou doente e a Srta. Sears precisou sair da cidade. Quando voltou, eu expliquei o que havia acontecido, pedi cooperação e ela aceitou — revelou Alexander. — Contei para ela tudo o que o William passou, inclusive as várias overdoses e internações, até que um quadro de amnésia fez ele se recuperar. Foi um susto, e nós achamos que o perderíamos também, mas quando William se lembrou de mim e dos nossos pais, sem se lembrar das irmãs ou qualquer amigo da juventude, achamos melhor mantê-lo no escuro sobre isso.

Antes que eu pudesse pedir, Alexander me estendeu uma pilha de pastas com os prontuários médicos de William. Pelo pouco que li, percebi que ele realmente chegou muito perto da morte.

— E se um dia ele se lembrar?

— Vamos precisar estar preparados, mas decidimos salvar ele primeiro e pensar nisso depois. Até hoje, mesmo convivendo com a Srta. Sears, ele não se lembrou de nada. Imagino que não será um problema com você. Talvez ele precise de um estímulo mais forte, como as duas irmãs, mas enquanto a Wendy está presa e a Audrey desaparecida…

— Ela nunca usava esse nome — não pude resistir ao comentário lembrando das vezes que ela explicou porque usava o nome diferente. — Achava comum demais.

Alexander deu um sorriso deixando de lado por alguns instantes o semblante frio e controlado e assumindo, com um sorriso tenro, o carinho e a saudade que sentia da irmã.

— Pode contar com a minha cooperação, — resolvi aceitar a situação, já que não havia muito o que ser feito no momento. — E sinto muito pelo que aconteceu.

Alexander acenou com a cabeça tanto em acordo quanto em agradecimento.

— Tenho algo que pertence a você — disse ele abrindo uma gaveta à sua esquerda.

Fiquei curioso para saber o que poderia ser.

— Com tanta coisa acontecendo, perdoe-me por ter te deixado sem resposta — ele esticou a mão com vários envelopes amarrados juntos por um barbante.

Minhas cartas para Zephyrus. Todas lacradas da forma como haviam sido enviadas. Senti um aperto no peito ao vê-las novamente. Ainda lembrava de algumas das palavras escritas ali.

— Não acho que o William vai fazer qualquer ligação dessas cartas com a irmã, ou sequer se interessar em ler algo do tipo, mas as mantenha longe dele, por favor.

Dessa vez fui eu quem apenas acenou com a cabeça para concordar. Havia um nó em minha garganta que me faria começar a chorar se eu dissesse qualquer coisa.

— Quanto à sua conversa comigo, se meu irmão ainda não sabe, já deve desconfiar. Você vai fazer o seguinte…

Com as instruções sobre como proceder, eu me despedi de Alexander e fui novamente conduzido até o carro que me deixou de volta em casa. Antes de desembarcar do veículo eu guardei as cartas, que vim segurando por todo o caminho, no bolso interno do meu casaco. Por conta do aviso, não me surpreendi com a primeira pergunta que William me fez quando entrei no apartamento.

— O que ele queria?

— Achei que você estivesse dormindo quando saí. Era cedo… — respondi evasivo. — Queria me pagar para espionar você — revelei de acordo com o que Alexander havia me instruído com medo do que poderia acontecer se eu não agisse daquela maneira.

— Você aceitou?

— Claro que não! — Fui enfático.

— Que pena… Poderíamos fazer bom uso do dinheiro.

Eu dei uma gargalhada e William me imitou. Olhei para ele com um pouco de pena por conta do ocorrido. Meu primeiro passo, assim que possível, seria informar à Molly o que eu sabia, para que nós dois pudéssemos ajudá-lo a se lembrar. Não desistiria de encontrar Zephyrus e sabia que William era o detetive mais capacitado para ser colocado no caso. Ele era a última esperança de tanta gente, poderia fazer aquilo pela família quando estivesse pronto. Enquanto isso, selei uma promessa silenciosa de que faria o melhor possível para manter saudável o irmão que Zephy sempre cuidou com tanto carinho.


E então, gostaram? Diferente do que eu tenho o costume de escrever, esse conto foi todo narrado em primeira pessoa. Confesso que tenho mais dificuldade nesse formato e prefiro escrever em terceira pessoa.

Esse é mais um conto de um universo que criei, sem a intenção de explorar em forma de livro ou história linear, apenas algumas cenas aleatórias para exercitar minha escrita. Para ler mais contos desse universo, acesse a tag: Cupcake.

Um comentário:

  1. Gostei muito. Prendeu desde o início. Muita grata por tão boa leitura. Já agora, gostaria da continuação.
    Beijinhos.

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