Minibiografia autorizada
Sangue inocente
— Não precisa me esperar acordada — disse João, o lobisomem, enquanto se livrava das roupas antes da transformação.
Como havia uma floresta bastante densa a poucos metros do quintal dos fundos,
não precisava mais passar da forma humana para lobo vestido. Isso poupava seu
guarda-roupa da necessidade de reparos constantes.
— Ah, meu
sacrifício de toda lua cheia… — reclamou Catarina. — Vou começar a esperar
dentro de casa até que você esteja com o corpo todo coberto de pelos e a
aparência de um lobo gigante.
— Eu sei que você gosta de apreciar
esse corpinho atlético. — João fez uma pose com os braços como se fosse um
fisiculturista sendo julgado.
— Pelo amor da nossa amizade, vai pra
luz, por favor! — A bruxa havia fechado os olhos durante o exibicionismo do
amigo, mas não conseguia segurar o riso.
Primeiras Lembranças
Audrey Zephyrus ainda estava abalada com as recentes descobertas e aceitava o carinho de John, o primeiro namorado de quem não se lembrava na tentativa de assimilar tudo o que acontecia. Ela estava deitada sobre o peito dele, abrigada em um abraço. Depois de um teste de DNA provar que Alexander Boreas, William Notus e Wendy Eurus eram seus irmãos, mesmo que ela não tivesse lembranças deles.
Alexander, o mais velho, a informou sobre seu sequestro, no meio do segundo trimestre de 2009, permanecendo desaparecida até aquele momento. Além disso, a mais nova deles, Wendy, havia cometido um crime e estava presa, tragédia que contribuiu para o trauma de William, com quem agora dividia o sobrado em Londres, o fazendo esquecer a existência das duas por um bom tempo.
Os irmãos se olhavam constantemente em silêncio estranhando o fato de não reconhecerem um ao outro, e a esperança que algo de repente faria com que ambos se lembrassem de alguma coisa, parecia cada vez mais ficção científica. Alexander já planejava agendar o check-up da irmã que incluiria uma consulta psiquiátrica para começar a investigar a causa da falta de memória, suspeitando de transtorno de estresse pós-traumático, o mesmo diagnóstico de William, e assim tentar possíveis tratamentos. Nenhum deles estava disposto a simplesmente aceitar o fato, se apresentar e recomeçar a vida daquele ponto deixando o passado em branco. Aquele pensamento deu a Audrey uma ideia.
O começo de um sonho
— Cansada? — perguntou Felipe que trabalhava como caixa no café de seu pai, Arthur.
— Com calor… — respondeu a funcionária que usava um avental bege de sarja lisa com detalhes estampados nas cores vermelho e verde na barra, perto do pescoço, em volta de um único bolso e da fita para amarrar na cintura. Sobre esse bolso, ainda havia um Papai Noel bordado em patch aplique e ponto caseado. Ela tirou a bandana, da mesma estampa dos detalhes coloridos, já um pouco úmida na região das orelhas.
— Vou diminuir mais um pouco a temperatura do ar-condicionado — avisou o homem pegando o controle remoto branco. Como não estava atendendo as mesas naquele dia, ele usava suas roupas comuns, jeans e camiseta azul de mangas curtas com estampa remetendo a um filme de fantasia.
A mulher sorriu para o amigo em agradecimento.
— E pensar que eu cheguei a acreditar que estaria num lugar com neve nesse Natal — comentou ela recolocando o adereço de cabeça.
— Ano que vem a gente vai! — afirmou ele com convicção.
— Vamos ver.
Com a chegada de novos clientes, a mulher precisou interromper a conversa. O café estava movimentado, pois um local fresco para descansar e fazer um lanche no clima quente da última semana antes do Natal, era tudo o que as pessoas queriam. Quase um oásis no deserto.
O sinal que faltava
Muita coisa aconteceu nas vidas de Gregory e Stella desde que se conheceram no Brasil durante a primeira investigação internacional dos dois. Ambos não haviam completado 30 anos quando um assassino em série uniu as polícias de Las Vegas e Juiz de Fora para acabar com a trilha de sangue deixada pelo homem que atraía crianças para a morte. Caso resolvido, Greg, sua parceira, Sara, e o chefe dos dois, Jason, voltaram para os Estados Unidos deixando um convite para Stella se juntar a eles.
Meses mais tarde, era ela quem viajava para uma experiência trabalhando fora do país. Foi quase um ano e vários casos resolvidos até que a turbulenta noite da cidade estadunidense que nunca dorme a fez sentir saudade da relativa paz que tinha em sua cidade natal no interior de Minas Gerais. Com a promessa que voltaria para visitar os amigos que fez na equipe de peritos e investigadores de Las Vegas, Stella retornou ao Brasil.
Além do casual
Não era a primeira vez dela em Londres, porém, muita coisa havia mudado desde então. A Terra da Rainha agora tinha um rei, seu filho, que assumira o trono após a morte da mãe, e ela própria tinha uma herdeira. Era a primeira viagem internacional da bebê e o primeiro lugar que a mulher quis que a filha conhecesse. A cidade onde ela havia se apaixonado e sido correspondida pela primeira vez, evento o qual a motivou a acreditar que tinha o direito de ser feliz, sem o qual talvez nunca tivesse gerado uma criança.
As duas estavam na varanda do hotel terminando o café da manhã, quando, em uma conferida nas redes sociais de seu ator favorito, ela descobriu que o homem estava gravando na cidade aquela manhã. Buscando informações sobre o filme, a mulher se deparou com um convite irresistível. A equipe de filmagem estava procurando uma criança menor de 1 ano para gravar com o ator na cena final do filme.
A pequena loja de substantivos abstratos
O sininho em cima da porta da loja soou avisando ao velho homem atrás do balcão de madeira sobre a entrada da cliente. A jovem de cabelos pretos sorriu para o idoso que já conhecia de outras visitas e se apressou em dizer o que havia vindo buscar. Edgar sorriu enquanto Lara retirava a lista do bolso da calça jeans.
— Preciso de 5 meias verdades, 1 mentira e 3 alegrias, por favor.
— Pedido grande dessa vez… — comentou ele pegando pequenos potes de vidro vazios embaixo do balcão antes de se virar de frente para os maiores nos nichos da estante que cobria toda a parede atrás dele. — Algum motivo especial? Se me permite perguntar…
— Reunião de família — respondeu Lara sem se constranger enquanto seus olhos vagavam pela loja. Todo mundo levava aquele tipo de coisa para encontros como aquele. — O que tem naquele pote na vitrine, Edgar?