Manter o foco

Eu pensei muito se deveria ou não publicar essa cena e acabei decidindo publicar. No entanto, dessa vez, preciso fazer o contrário do que geralmente faço e pedir para que algumas pessoas não leiam. Não é uma cena com a descrição de nenhum evento traumático, mas há dois personagens conversando superficialmente sobre assuntos muitos delicados: automutilação e suicídio.

Minha dúvida se deveria publicar ou não era exatamente por conta do fato de algumas pessoas serem mais sensíveis a certos assuntos. Eu inclusive. Dessa vez vou entender perfeitamente quem decidir ignorar essa postagem e procurar por outra aqui no blog. Imagino que deva haver algo que você ainda não leu.

Para quem resolver ler a cena, volto a reafirmar que não há descrição do que aconteceu. O evento está no passado da personagem que tenta levar a vida e, se possível, se livrar de um hábito prejudicial do qual não se orgulha.

Lembrem-se sempre: o CVV, Centro de Valorização da Vida, presta serviço voluntário e gratuito de apoio emocional e prevenção do suicídio para todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo e anonimato.

Os contatos com o CVV são feitos pelos telefones 188 (24 horas e sem custo de ligação), pessoalmente (nos mais de 120 postos de atendimento) ou pelo site www.cvv.org.br, por chat e e-mail.

Beatrice e Miguel estavam prontos para dar mais um dia de trabalho por encerrado. Já passava das cinco da tarde e logo a luz do sol não estaria mais disponível para a captura das cenas que eles precisavam para o folder que havia sido encomendado na empresa onde eles trabalham.

Os dois faziam parte da equipe de fotógrafos e ambos haviam se especializado em fotografia de paisagem e natureza. Beatrice visualizava as fotos no visor da câmera digital, enquanto Miguel conferia em uma lista se eles haviam fotografado tudo o que fora encomendado.

— O que são essas marcas no seu antebraço? — perguntou Miguel parado de pé ao lado dela intrigado com o que via.

Era a primeira vez que a colega de trabalho estava sem algum tecido cobrindo os membros. Sempre havia um casaco, xale ou lenço, mas o calor era tanto, que Beatrice havia tirado o agasalho com que saiu da agência pela manhã, e ficando apenas de calça jeans e uma camiseta cinza justa ao corpo.

— Abracei uma roseira — respondeu a mulher com sarcasmo ajeitando uma mecha do cabelo loiro avermelhado liso demais para permanecer preso no elástico velho que o segurava.

— Por que você fez isso? — os olhos dele voltaram a se concentrar na lista que preenchia.

— Me ajuda a manter o foco.

Miguel parou o que fazia para acompanhar os dedos de Beatrice brincando com os botões da câmera fotográfica, pensando se algum dia a mulher diria as coisas de forma direta. Era difícil acompanhar o raciocínio dela daquele jeito.

— Você não devia fazer isso — disse ele lendo nas entrelinhas daquela resposta depois de refletir por alguns instantes.

— Sério? — Beatrice sorriu, se sentindo secretamente feliz por Miguel ter captado sua mensagem. — Parece que temos um Sheroke Homes aqui!

Ambos ficaram um tempo em silêncio, até que ela decidiu não mais esconder a verdade. Desde que se conhecerem, e passaram a trabalhar juntos, o homem cuja aparência dava a impressão de ser bem mais jovem do que era, a tratava de uma forma muito atenciosa.

Beatrice precisava deixar claro para ele com quem estava lidando e provavelmente esperar pelo seu distanciamento. Algo que sempre acontecia depois que ela desabafava com alguém.

— É óbvio que eu não deveria fazer isso, Miguel! Estou fazendo serem reais as feridas que as pessoas causam na minha alma! — ela parou de brincar com a câmera. — É óbvio que eu não deveria fazer isso, — repetiu com raiva. — Mas você não mergulha no oceano e pede gentilmente para um tubarão não te morder! Ou você fica fora do oceano ou se machuca. Não tem alternativa!

A respiração dela estava arfante, mas os olhos continuavam secos. A mulher já havia derramado todas as lágrimas que podia. Não sobrara nenhuma.

— Tem alternativa então — pronunciou ele falando devagar como se medisse cada palavra. — Você pode ficar fora do oceano.

— Você está realmente sugerindo o que eu estou pensando?

Os cabelos pretos de Miguel pareceram ainda mais escuros pelo tanto que ele ficou pálido enquanto a encarava. Beatrice ficou com pena quando percebeu o terror nos olhos dele, pois sabia que não havia sido a intenção dele sugerir exatamente aquilo.

— Da próxima vez, você pergunta primeiro o que eu considero o oceano antes de sugerir que eu saia dele, seu idiota — ela riu.

Miguel sorriu de volta constrangido por sua pressa em socorrer a mulher tê-lo feito praticamente sugeri-la que tirasse a própria vida. Nunca se sentiria páreo para o raciocínio dela.

Não seria tarefa fácil afastar o homem com o conforto que Beatrice sentia estando com ele. Algo que não experimentava há anos, se é que já havia experimentado. Mas ela sentia que era necessário, para não acabar se tornando um fardo para ele.

— Não conta para ninguém lá na agência! — ela implorou assustada quando percebeu as proporções que aquilo poderia tomar. — Ninguém pode saber — Beatrice o encarava sem respirar.

— Não se preocupe — garantiu o homem.

Miguel esticou a mão direita na direção dela, e como a mulher não recuou, ele tocou uma das cicatrizes no antebraço esquerdo dela com a ponta do indicador direito.

— Eles podem achar que eu vou trazer problemas, ou despesas, e vão querer me demitir...

— Relaxa — o homem sorriu. — Não vou te dedurar, nem comentar com ninguém. Mas você está fazendo algum acompanhamento psicológico?

— Não tenho grana para isso — respondeu ela desligando a câmera.

— Você pode procurar atendimento gratuito — insistiu ele.

— Me deixa em paz — pediu ela enquanto alcançava a bolsa de transporte para guardar o equipamento.

— Você é minha amiga e eu me preocupo com você, só isso — Miguel colocou a lista já verificada na mochila.

— Por quê? — quis saber ela.

— Por que eu me preocupo?

— Por que quer ser meu amigo?

Os dois olharam um para o outro e o homem percebeu a sinceridade que havia na pergunta. Tentou imaginar quantas vezes Beatrice se sentiu abandonada para chegar ao ponto de questionar aquilo, mas não tinha como mensurar algo assim. Miguel sorriu para ela mais uma vez e decidiu se dedicar da melhor forma que pudesse para que aquela amizade desse certo.


Para quem chegou até aqui, eu gostaria de saber sua opinião sobre a cena. Imagino que, assim como eu, vocês devem estar torcendo para tudo melhorar para a Beatrice. Todo mundo merece muito amor na vida. Espero que ela busque ajuda e se recupere!

4 comentários:

  1. Olá!
    Gostei de você ter avisado sobre os gatilhos que o texto aborda.
    Beijos.



    https://www.parafraseandocomvanessa.com.br/

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    Respostas
    1. Oi! ^^
      Acho muito importante avisar. Eu não quero deixar de escrever sobre nenhum tema, mas alguns assuntos mais delicados, que podem ser gatilho para alguém, eu me sentiria mal se não avisasse antes. Mas textos assim serão a minoria por aqui. Só precisei usar o espaço para extravasar um pouco.

      Beijos;

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  2. Achei uma cena bem bonita e delicada, assunto delicado.
    Não deve ser fácil pra quem se automutila falar sobre, assim como também não deve ser fácil perguntar para alguém sobre isso.

    https://www.heyimwiththeband.com.br/

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    1. Fico feliz que você tenha gostado.
      Sim, é um assunto bem delicado e acho que talvez devesse receber mais atenção, assim como estão fazendo com o a depressão. É preciso falar, espalhar a ideia de que a pessoa está doente e precisa de ajuda, não de julgamento.

      Beijos;

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