Mais um suspiro em frente a tela em branco transparecia o quanto aquilo havia se tornando um sacrifício sem que ela tivesse percebido. Já havia visto lido em várias postagens no Pinterest que geralmente se passa mais tempo pensando em escrever um livro do que escrevendo de fato, mas às vezes os motivos que levavam àquela procrastinação eram uma tortura.
Entretanto, não adiantava tentar buscar soluções na internet, pois todos os lugares onde havia lido sobre essa resistência em fazer algo falava sobre o perfeccionismo, e a escritora tinha ciência de que não era o seu caso. Sim, ela aceitava com tranquilidade que seus texto não eram perfeitos e precisavam sempre de muita revisão, mas via cada um como o melhor que poderia fazer naquele momento, então acreditava que todos eram bons o suficiente.
— Você precisa de um café — disse a voz em sua mente.
— Agora não — respondeu ela.
— Agora sim, vamos — continuou a voz insistente.
— Não quero — ela continuava olhando para a tela.
— Claro que você quer.
— E quem te deixou petulante desse jeito?
— Você. — Ela não via um rosto, mas sabia que ele estava sorrindo.
A escritora sorriu. Era nisso que dava deixar os personagens na sua mente terem total liberdade. Pelo menos tinha convicção que se fosse considerada louca, não estaria sozinha. A mulher respirou fundo e se levantou para ir até a cozinha de casa pegar uma xícara de café da garrafa.
— Esse não — a voz em sua mente soou mais alta e clara, parecendo um sussurro em seu ouvido e não como parte de sua imaginação fértil. Real o suficiente para fazê-la interromper a caminhada e se virar, mas não havia ninguém. Estava sozinha.
Parou em frente a bancada na cozinha e seguiu a sequência de sempre: xícara, garrafa térmica, café, líquido preto até metade da xícara, fechar a tampa, devolver a garrafa para o lugar e pegar a…
— Eu disse que esse não — um par de braços se materializou em volta da mulher e aquilo poderia ser o começo de um filme de terror se não fosse o que aconteceu logo em seguida.
Ela havia fechado os olhos em reflexo e contraído toda a musculatura com o susto, e assim que teve condições de reagir o plano era usar toda sua força para correr e gritar. Contudo, não foi o medo que a paralisou novamente, mas sim a surpresa.
A mulher mal acreditou quando abriu os olhos e percebeu que estava diante do Art's Café. Nome com inspiração inconsciente do programa ‘O Mundo de Beakmanʼ que ela assistia durante sua juventude. O cientista tinha um quadro chamado ‘cozinhando com Artʼ e ela sem perceber havia absorvido aquilo e nomeado o café com o mesmo nome. Só percebeu isso alguns anos depois de ter escrito a primeira história no local ao rever a atração no Youtube. Entretanto, não tinha medo de ser acusada de cópia, pois o proprietário se chamava Arthur e essa sempre seria a justificativa para o nome da cafeteria.
Encantada com o que estava acontecendo, ela se virou para ver o dono dos braços e responsável por aquela pequena viagem. Os dois sorriram um para o outro em reconhecimento. Um dos personagens principais da história original inspirada por sua fanfic de maior visualização. A versão um pouco mais jovem de seu ator favorito. Ambos tinham a mesma idade, apesar do fato do homem só existir em sua imaginação.
Ele se adiantou e abriu a porta do estabelecimento, mas não houve sininho balançando quando ela entrou, pois aquela história se passava no Brasil, mais precisamente no interior de Minas Gerais, e aquilo não era um costume. O cenário era bem conhecido, principalmente para ela que havia projetado aquele lugar. O letreiro em madeira sobre a porta com o nome do café esculpido, as mesinhas do mesmo material, em cor mais escura, com quatro cadeiras em volta coberta com uma toalha enfeitada com um arranjo delicado de flores, quatro banquinhos de frente para o balcão ao lado da estufa de confeitaria.
Ela escolheu uma das mesas vazias ao lado da vitrine e o homem sentou na cadeira oposta de frente para ela. Uma mulher usando um avental bege com o nome da cafeteria bordado em azul; Art’s Café – se aproximou deles e se afastou depois de anotar os pedidos.
— Por que quis que eu viesse tomar café aqui?
— Por que você não quer escrever? — perguntou ele sem responder.
— Perguntei primeiro — insistiu ela.
— O que te bloqueia? Sei que não é insegurança — ele agia como se ela não o tivesse questionado.
A mulher desistiu da batalha perdida. Conhecia bem seus personagens.
— Acho que é medo da certeza de que eu não vou poder me sustentar com isso — ela expirou de forma audível. — A incerteza teria seu conforto… mas acho que já abandonei essa esperança.
— Mas e se der certo? Digo, são tantas áreas onde a escrita criativa tem utilidade. Publicar um livro não é a única forma de contar histórias. Até porque, com apenas um livro, nem sendo tão boa quanto eu sei que você é, venderia o suficiente para pagar todos os boletos.
A mulher sorriu com os olhos cheios de lágimas, lisonjeada com o elogio.
Anna voltou trazendo o café expresso para ela e o cappuccino para ele demorando mais que o necessário para servir os dois, interessada na conversa.
— Você não está sozinha nisso.
— Quer dizer que é seu sonho também?
— Não. O sonho é todo seu. Você só não precisa passar sozinha por nada disso. Sei o quanto a escrita pode ser uma atividade solitária. Por isso, prometo estar sempre aqui.
A garçonete deu sorriu discreto para o homem e se afastou da mesa.
— Primeiro você precisa parar com esse misticismo. Não é porque você tem algumas horas agradáveis escrevendo que necessariamente algo ruim vai acontecer. E mesmo que aconteça, te garanto que não está diretamente relacionado.
A escritora ouvia sem interromper enquanto adoçava o café.
— Não tome isso como uma ofensa, mas você não é o centro do universo, — ele tombou a cabeça para a direita. — Sei que quando era criança você acreditava que a felicidade de todos à sua volta dependia de você, mas também sei que já amadureceu o suficiente para entender que isso estava errado.
— Isso que dá deixar a pessoa viver na sua cabeça sem pagar aluguel — ela retrucou com sarcasmo.
O homem riu e endireitou a cabeça antes de dar um gole no cappuccino.
Anna, que havia acabado de anotar um pedido de outra mesa, caminhava em direção à cozinha.
— Triste, né? — disse ela ao passar do lado do caixa indo para trás do balcão. — A arte ser tão desvalorizada ao ponto das pessoas ficarem em dúvida se devem usar seu tempo com isso ou não.
— Você tá escutando a conversa dos clientes de novo? — Felipe sorriu.
— Nada disso, — retrucou Anna. — Só fui deixar o pedido deles na mesa e eles não pararam a conversa por conta da minha presença.
— Quem é o artista?
— Ela, — respondeu Anna abraçando a bandeja vazia ao lado do amigo. — Pelo que eu entendi é escritora.
Felipe fez uma careta.
— Se fosse pintora, escultora ou fotógrafa eu até poderia oferecer um espaço aqui para exposição, mas texto é mais complicado. Exige esforço da parte interessada em consumir a arte e tempo. Geralmente as pessoas não fazem da leitura uma prioridade.
— E sair fazendo ofertas aleatórias vai parecer que eu estou ouvindo a conversa dos clientes.
Os dois trocaram um sorriso. Felipe sabia que Anna estava certa, pois se todo cliente que entrasse ali fosse abordado daquela forma, logo ninguém mais viria ao café por questões de privacidade. Mas ele queria fazer algo para ajudar, e prometeu para si mesmo que pensaria em alguma coisa.
— É que eu sempre me sinto culpada por estar escrevendo em vez de procurando um emprego — revelou ela depois de um suspiro.
— É por isso que você quer publicar tudo o que escreve? Para mostrar serviço?
— Acho… acho que sim — ela deixou o olhar vagar pelo estabelecimento antes de continuar. — Me sinto mal com isso, mas não consigo pensar no que fazer para mudar. A situação ou o sentimento.
Ele acenou com a cabeça demonstrando que havia entendido.
— Queria que fosse mais fácil… a vida. A gente cresce acreditando que tudo vai acontecer magicamente, de uma hora para a outra. Inclusive me falaram isso muitas vezes. Que era só esperar e acreditar…
— Talvez isso seja apenas reflexo de pessoas que não reconhecem o esforço alheio. Mesmo os milagres precisam de oração pra acontecer.
Aquilo a fez ficar em silêncio por alguns minutos. Ele não a apressou, pois conhecia bem a maneira dela raciocinar e processar as ideias.
— Olha, se te ajuda, da próxima vez que se sentir mal por escrever uma história, em vez de se perguntar por que escrever, experimente perguntar por que não escrever? Não é como se você tivesse deixando de procurar emprego, ficar com sua família ou limpar a casa… — ele riu quando ela desviou o olhar nessa última parte. — Você sabe que não faz essas coisas quando deixa de escrever. Você fica com o celular na mão navegando pelas timelines infinitas. E te garanto que muito melhor do que fazer isso o dia todo, seria escrever uma história que talvez possa servir de inspiração para alguém, mas se não for o caso, não tem nenhum problema. Essa é a sua melhor forma de se expressar — ele tocou a mão dela sobre a mesa ao lado da xícara de café.
Pela troca de olhares e o silêncio que se seguiu, o homem sabia que havia chegado ao limite dela. Tinha falado tudo o que queria e se fosse um pouco mais além, sua insistência seria interpretada pelo sistema nervoso dela como uma ameaça. Viver dentro da mente da escritora dava a ele esse conhecimento íntimo.
— Eles não têm ideia de quem eu sou — disse ela com a voz um pouco mais baixa se referindo a dupla atrás do balcão.
— Normal. — O homem à sua frente sorriu percebendo com tranquilidade a mudança de assunto. — Não é todo dia que uma escritora consegue realmente entrar na história que criou e ainda tomar um café.
— Mas você sabe…
Eles se olharam fixamente em silêncio.
— Espero que você não tenha problemas, e por favor, não me traga problemas por ter feito isso.
— Impossível trazer problema para você, já que é você quem manda em tudo aqui.
— Quer alimentar ainda mais meu sentimento de culpa?
— Eu não te culparia por tudo de ruim que acontece com a gente. Você sabe muito bem que cada personagem tem seu nível de desobediência.
Ela riu, pois conhecia bem o que ele estava falando. Era algo inexplicável, mas às vezes a história simplesmente não ia pelo caminho planejado por ela. Quando o fenômeno acontecia, a escritora precisava parar e deixar que os personagens inspirassem o desenrolar da trama. Às vezes isso significava apagar um capítulo inteiro porque de alguma forma não se encaixava na história.
— Você sabe no que eu acredito, — ela tomou mais um gole do café já quase no fim. — Pra mim vocês são pessoas que vivem em universos invisíveis, pelo menos para a minha realidade, e acabam cruzando meu caminho e me contando uma história. É isso que eu passo para o papel. Se eu empaco às vezes é porque não ouvi direito.
— Tão poético quanto o que você cria.
A escritora sorriu e uma chuva fraca começou a cair. O homem olhou para ela e entendeu pelo sorriso que a água lá fora era intencional e pelo divertimento em seu rosto, a mulher estava feliz por ter sido tão fácil manipular o clima.
— A gente precisa pagar pelo café?
— Você já quer ir embora?
— Queria morar aqui pra sempre — respondeu ela. — Sim, eu preciso ir.
O homem sinalizou para a garçonete pedindo pela conta, e Anna indicou para que fossem direto ao caixa. Assim a dupla fez e, depois dele pagar a conta usando um cartão que tirou da carteira no bolso de trás da calça jeans, caminharam em direção à porta da frente do café.
— Não trouxe sombrinha, acho que vou parar a…
— Não precisa — disse o homem acariciando com carinho o braço da mulher a incentivando a abrir a porta.
Desconhecendo o que viria a seguir, mas confiando em seu personagem, ela abriu a porta e sem entender como, estava novamente de frente para a bancada em sua cozinha. À sua direita a garrafa térmica e em frente a ela a xícara suja de café, porém vazia.
— Eu só queria que você experimentasse a sensação de estar dentro das histórias que você escreve — aquele pensamento era a resposta para a sua primeira pergunta.
— E tomasse uma xícara de café fresco — disse ela em voz alta.
— Isso também — mais um pensamento, esse concordando com o que ela havia dito.
— Não posso prometer que vou conseguir…
— Saber que você não vai desistir já me deixa tranquilo.
Nunca foi estranho para ela ter uma conversa como aquela através de pensamentos.
— Mesmo que eu quisesse, não conseguiria. E obrigado pela gentileza de ter escolhido uma história tranquila.
A risada dele ecoou em sua mente.
Gostei muito. Tantas vezes gostaria de escrever, mas o tempo de outros afazeres e a maldita preguiça mental atrapalham...
ResponderExcluirBeijinhos