Sangue inocente

— Não precisa me esperar acordada — disse João, o lobisomem, enquanto se livrava das roupas antes da transformação.

Como havia uma floresta bastante densa a poucos metros do quintal dos fundos, não precisava mais passar da forma humana para lobo vestido. Isso poupava seu guarda-roupa da necessidade de reparos constantes.

— Ah, meu sacrifício de toda lua cheia… — reclamou Catarina. — Vou começar a esperar dentro de casa até que você esteja com o corpo todo coberto de pelos e a aparência de um lobo gigante.

— Eu sei que você gosta de apreciar esse corpinho atlético. — João fez uma pose com os braços como se fosse um fisiculturista sendo julgado.

— Pelo amor da nossa amizade, vai pra luz, por favor! — A bruxa havia fechado os olhos durante o exibicionismo do amigo, mas não conseguia segurar o riso.

João andou até uma parte mais iluminada do quintal e ficou de braços abertos como se tomasse um banho à luz da lua. Não demorou muito para a transformação começar. Pelos escuros brotaram por toda sua pele como num vídeo de planta crescendo em timelapse, seus braços e pernas começaram a afinar até ficarem quase do mesmo tamanho e comprimento suportando o corpo do homem no chão enquanto tronco tomava uma forma um pouco mais cilíndrica.

Tudo acontecia ao mesmo tempo e ao final da transformação, o rosto de João também não estava mais ali. Dera lugar a um focinho com dentes afiados, nariz canino e duas orelhas pontudas com uma mecha de pelo mais claro entre as duas. A única descoloração em sua pelagem escura.

Catarina tentou tocá-lo e como de costume o homem, agora lobo, correu em direção à floresta sem deixar a amiga realizar sua vontade. Por mais que tentasse convencê-lo de que não havia perigo em contaminá-la daquela maneira, João preferia a precaução em vez de passar sua condição para Catarina. Ela o impedia de chamar aquilo de maldição, ainda mais agora que ele podia correr livre pela floresta. Antes, quando não tinham o benefício do esconderijo proporcionado pelas árvores, ela preparava uma poção do sono para que o lobo conseguisse ficar a noite toda trancado e quieto em um cômodo da casa.

De repente um uivo interrompeu o silêncio da noite fazendo o coração da mulher acelerar. Era o sinal que João sempre dava ao chegar a uma parte protegida e oculta do arvoredo garantindo que ficaria bem. Catarina sabia que apenas quando a lua sumisse veria o amigo novamente. Antes dos primeiros raios de sol, ele estaria de volta em casa. A mulher recolheu a roupa jogada no chão, perto do portão de madeira do quintal dos fundos, e colocou tudo sobre a cadeira ao lado da porta torcendo para que o amigo não chegasse exausto demais para se vestir antes de entrar.

As noites de lua cheia eram solitárias para Catarina sem a companhia do amigo e por isso ela preparou o chá e foi para o quarto se aconchegar na cama e ler um livro. Ainda não era meia-noite quando a mulher resolveu trancar a casa e ir dormir deixando a chave da porta dos fundos em um esconderijo combinado com João.

Entretanto, não foi o despertador que a acordou no dia seguinte ou o barulho do amigo tentando entrar em casa sem fazer barulho e derrubando metade dos objetos pelo caminho. Foi algo muito mais assustador que a princípio ela pensou se tratar de fogos de artifício, mas seu cérebro tratou de alertá-la que não era isso.

— Um tiro? — Catarina sentou ereta sobre a cama de solteiro.

Sem conseguir explicar o motivo, ela correu até o quarto de João apenas para constatar que estava vazio. Ainda era muito cedo para o amigo chegar. Ele estava lá fora e aparentemente um caçador também. Um gosto de bile chegou até a garganta da mulher que fez esforço para se controlar. Precisava agir, descobrir se o amigo estava bem, e não correr para o banheiro e vomitar o jantar.

Calculando cada passo, ela primeiro foi até a cozinha e alcançou no armário de poções um de seus preparos. Sabendo que o amigo caso estivesse em perigo estaria escondido, e sem querer se colocar em risco, precisava de todos os seus sentidos muito aguçados.

Depois de tomar a poção, e enquanto esperava fazer efeito, trocou o pijama por calças legging pretas e uma blusa justa azul-marinho de malha, calçou um par de botas, pegou sua capa escura com capuz e saiu pelo quintal dos fundos.

Catarina precisou de alguns segundos para se adaptar quando todas as sensações que geralmente passavam despercebidas a atingiram. Os sons da floresta e os cheiros, amplificados pela poção de uma maneira quase insuportável para um ser humano. Ela agradeceu que ainda estivesse de noite, ou precisaria lidar com a claridade de arder os olhos.

Antes de sair dos limites do quintal, a bruxa cheirou as roupas do amigo sobre a cadeira ao lado da porta e tratou de memorizar o que precisava procurar separando aquele odor dos demais. Catarina cobriu a cabeça com o capuz, fechou a capa na frente do corpo e saiu em busca de João rezando para que ele estivesse bem e tudo não passasse de uma preocupação sem motivo.

Caminhando pelas sombras e evitando cruzar o caminho de qualquer ser vivo usando sua superaudição, ela tentou encontrar o rastro do amigo ao mesmo tempo em que mantinha os olhos atentos para não se perder.

— Acho que ele foi rastejando por ali — disse uma voz grave a vários metros de onde Catarina estava.

— Por onde? — quis saber outra voz, um pouco mais fina. Provavelmente alguém mais jovem.

— Na direção daquele ipê-amarelo.

A boca da mulher se abriu quando ela, espantada, percebeu as pequenas flores aos seus pés. Olhando para cima, Catarina viu o ipê do qual estavam falando. Aquilo era bom e ruim ao mesmo tempo. Se a dupla estivesse certa, a criatura que perseguiam estava por perto e logo ela encontraria o amigo. Entretanto, havia a possibilidade de não ser João a quem estavam caçando.

— João, — sussurrou ela. — Se estiver me ouvindo, preciso de um sinal.

Catarina prendeu a respiração, fechou os olhos e aguçou os ouvidos. Não queria ser atrapalhada por nenhum outro sentido, pois, pelo farfalhar das folhas, os caçadores estavam cada vez mais perto. Um gemido baixo e dolorido era tudo o que ela precisava para saber em que direção seguir e salvar o que estivesse precisando de ajuda.

Ela dobrou os joelhos e passou a caminhar atenta ao chão, procurando um distúrbio no solo da floresta que pudesse indicar a presença de um esconderijo. No entanto, não foi sua visão, e sim seu olfato que revelou o local ao ser invadido com um cheiro ferroso inconfundível. Sangue fresco.

— João…, — aflita, a mulher foi retirando folhas e galhos até encontrar o amigo em uma pequena toca entre o chão e um tronco caído. — Vem, — disse ela abrindo a capa pedindo o lobo para se aproximar.

Mas o lobisomem não se moveu.

— Não consegue andar?

Ele se encolheu para longe dela.

— Já disse que a única forma de me contaminar é me mordendo. — Ela estava cada vez mais apreensiva olhando para trás o tempo todo com medo que as pessoas que perseguiam o amigo logo estivessem ali. Pelo som das folhas sendo pisadas, faltavam poucos metros. — Por favor, — insistiu ela com a capa aberta. — Se eu sair sem a capa vão me ver — disse explicando a necessidade de irem juntos.

Um pouco relutante João saiu do esconderijo e entrou debaixo da capa ao lado de Catarina. Como ainda estava na forma de lobo, ele se deslocava sobre as quatro patas e a mulher percebeu a dificuldade do amigo em apoiar a dianteira direita no chão além de pequenos tremores enquanto caminhavam. Aquilo era o suficiente para dizer a mulher quanta dor o amigo estava sentindo.

Não conversaram durante o trajeto até a casa e assim que entraram, aliviados por terem conseguido chegar em segurança mantendo distância dos perseguidores, João se arrastou até o chão de seu quarto enquanto Catarina despiu a capa e foi juntar as poções, ataduras e esparadrapos necessários para cuidar do amigo. Pegou também uma poderosa poção contra a dor, já imaginando que os ferimentos deveriam ser grandes. Ela saberia aquilo em alguns minutos e estava apenas esperando a lua desaparecer no horizonte para começar a trabalhar.

A visão do amigo de volta a forma humana encolhido em posição fetal sobre seu lado esquerdo no tapete perto da cama a fez sentir uma pontada no peito, na altura do coração, assim que colocou os pés dentro do quarto dele. Deixando o que havia trazido sobre o colchão, perto dos pés da cama, ela sentou ao lado de João com o frasco da poção contra dor.

— Nem pense em beber isso sem a minha supervisão. Pode matar você, — ela foi ríspida ao fazer a ameaça, pois o risco era real. Catarina segurou o queixo do amigo e virou o rosto dele para cima despejando não mais do que cinco gotas sobre sua língua. — Já vai passar — disse depois de deixar o frasco perto do restante que havia organizado antes de acomodar a cabeça de João sobre seu colo.

O efeito da poção diminuindo a dor acompanhado pelo carinho da mulher, fez o homem relaxar.

— Já consegue subir na cama? — perguntou ela. — Quero começar a cuidar desses ferimentos.

— Acho que consigo. — Primeiro João sentou e em seguida, sem apoiar a perna machucada no chão, ficou de pé amparado pela amiga.

Catarina o colocou sentado no meio do colchão da cama de solteiro, mas com as pernas ainda tocando o chão. Ao se abaixar na frente dele, percebeu logo que o ferimento precisava ser lavado e para isso precisaria de uma bacia com água.

— Já volto — avisou se levantando.

— Cat…

Ela olhou para João com doçura.

— Pega uma cueca limpa e uma bermuda pra mim — pediu.

— Ué, cansou de se exibir? — ironizou ela com um sorriso, feliz por conseguir provocar a mesma reação no amigo.

A mulher foi até a cômoda e pegou as peças de roupa atendendo ao pedido e antes de sair do quarto ainda o ajudou a vestir a cueca até a altura dos joelhos quando João disse que conseguiria se virar sozinho a partir dali. Ao voltar com a bacia cheia d’água e uma barra de sabão neutro, ele já estava vestido com as duas peças.

— Não precisou de ajuda com a bermuda — comentou ela deixando o vasilhame no chão na frente dos pés dele.

— Esse remédio que você me deu é milagroso! Poderia me levantar tranquilamente e sair correndo por aí.

— É por isso que é tão perigoso, — explicou enquanto começava a lavar a perna machucada. O ferimento ia da metade da panturrilha até perto do calcanhar. — Você poderia estar com um sangramento interno ou algo do tipo e correr por aí sem perceber piorando seu estado. Além disso, — ela continuou antes que João pudesse interromper. — Isso é um veneno pro fígado. Fique longe de álcool pelos próximos 15 dias para o órgão conseguir se recuperar.

— Esse tempo todo? Nem um golinho de vinho?

— Nem uma gotinha — reforçou ela. — Como você conseguiu esse machucado?

— Esbarrei numa armadilha de urso, quase fiquei preso, mas consegui me livrar dela e por isso atiraram em mim.

— Seu pé poderia ter sido arrancado — revelou ela analisando o ferimento já limpo enquanto preparava agulha e linha própria para fechá-lo.

— Eu sei, — João engoliu em seco. — Não entendi porque estava lá. O que será que estavam caçando?

— Duvido muito que seja você — afirmou ela percebendo o medo do amigo. — Mas eu vou descobrir.

— Cuidado.

Catarina olhou para o amigo e sorriu para ele recebendo o mesmo gesto em retorno.

— Estou quase terminando de suturar aqui e já vou dar uma olhada no que fizeram no seu ombro. Espero que a bala não tenha ficado alojada. Não sou muito boa com extrações.

— Devo me preocupar?

— Muito cedo pra isso — a mulher deu uma risadinha.

Por conta das suas habilidades com poções e unguentos, ela costumava usar seus conhecimentos atuando como uma curandeira nos lugares onde morava até a população começar a implicar com seu talento e a perseguir por bruxaria.

Não estavam errados com a alegação, mas ela nunca exibia os poderes sobrenaturais com os quais havia nascido exatamente para não provocar aquele tipo de reação. Ainda assim, acabava sendo perseguida e enxotada ou, como na ocasião em que conheceu João, correndo sério risco de ser queimada viva.

— É seu dia de sorte — anunciou ela já de pé ao lado direito do amigo enquanto analisava o ferimento do ombro. — Tá menos pior do que o da sua perna. Passou de raspão.

— Vamos celebrar! — declarou ele. — Ah, é, me esqueci. Nada de champanhe pra mim.

Os dois deram uma gargalhada, mas já haviam percebido o que aquela tentativa desesperada de manter o humor nas alturas significava. Ambos estavam aterrorizados. Não queriam ter que ir embora de mais um lugar, mas precisariam caso um deles estivesse correndo perigo. Haviam prometido um ao outro nunca se separar.

Catarina terminou o resto dos curativos em silêncio e da mesma forma recolheu o material usado e deixou sobre a mesa da cozinha antes de voltar ao quarto do amigo.

— O efeito daquela poção ainda vai durar algumas horas, — explicou checando se a janela atrás das cortinas estava fechada. — Quando isso acontecer, eu tenho outra coisa um pouquinho mais fraca, mas que será suficiente para a sua dor. — Enquanto falava, ela ajudou o amigo a se deitar e o cobriu. — Descanse o quanto precisar — ela acariciou os cabelos de João caídos sobre a testa.

A dupla trocou um olhar angustiado quando a mulher parou entre os pés da cama e a porta. Desistindo de lutar contra o sentimento, ela descalçou as botas, se aconchegou ao lado dele debaixo do cobertor e abraçou o amigo que retribuiu o gesto. As lágrimas não demoraram a aparecer expondo a tristeza de talvez nunca conseguirem viver por muito tempo num lugar por mais isolado que fosse.

Essa é a terceira vez que essa dupla de amigos aparece aqui no blog! Eu já desisti da ideia de tentar não me envolver com os personagens e escrever apenas uma história. Espero que vocês estejam gostando de acompanhar as aventuras da bruxa e do lobisomem. Nem eu sei o que o futuro reserva para a dupla. Para mais contos de Catarina e João, acessem: Applepie.

6 comentários:

  1. Oi, Helaina! Caramba muito bom. Particularmente gosto bastante de histórias de lobisomens e bruxas, e essa aí que você escreveu está maravilhosa. Você escreve muito menina. Um abraço!

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    1. Oi Luciano, fico feliz que você tenha gostado! Muito obrigada! Abraço!

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  2. Olha, muito bom! Tens inspiração para conto de fantasia. Gostei de ler.

    Beijinhos e tudo de bom!

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    1. Fico feliz que tenha gostado! Muito obrigada!

      Beijos e tudo de bom pra você também!

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  3. Que história incrível helena! Você é uma escritora maravilhosa.
    Bjs
    https://deliriosdeumaliteraria.blogspot.com/

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