Profecia na garrafa

Zephyrus já estava ficando cansada com tantas fichas de cadastro que o namorado, John, preenchia. Ele queria a todo custo encontrar uma maneira de custear o curso de medicina na Kings College London sem depender dos pais. A jovem chegou a oferecer ajuda financeira e até comentou que ele poderia devolver o dinheiro quando estivesse formado e empregado como médico se quisesse, mas John estava atrás de sua total independência. Um empréstimo não era o que tinha em mente, mesmo sabendo que as posses da família da namorada eram suficientes para pagar todas as taxas obrigatórias e os extras que desejasse.

— Você tá chateada? — perguntou ele sem tirar os olhos do papel que preenchia.

— Por que estaria? — Ela olhava para as folhas sobre a mesa completamente entediada.

— Por eu não aceitar sua oferta. — John finalmente a encarou.

— Eu te entendo, e não, não fiquei chateada, só triste porque se você começar a trabalhar na Harrods. — Ela pegou uma das fichas e leu o nome do estabelecimento. — A gente vai passar menos tempo juntos.

— Você pode ir me visitar no meio do expediente, — sugeriu ele voltando a dar atenção ao que preenchia.

— É a melhor forma de conseguir uma demissão. — A jovem riu e o namorado olhou para ela retribuindo o gesto.

Faltava pouco para o meio dia e os dois esperavam pela comida que haviam pedido na mesa da lanchonete da rede de fast food. Para passar o tempo, Zephy, como preferia ser chamada, começou a conferir os dados dele para ver se estavam corretos. Depois de três fichas, a data de nascimento de John finalmente chamou atenção o suficiente para ela retirar o celular do bolso e conferir.

— Hoje é seu aniversário! — exclamou ela.

— É… — concordou ele sem vontade.

— Por que você não me disse?

— Não gosto de aniversários…

Conhecendo o relacionamento do namorado com os pais, e imaginando como deveria ser com o resto da família, ela preferiu não perguntar o motivo. Pelo menos não no momento em que uma ideia surgiu em sua mente.

— A gente vai comemorar. — Ela deixou a ficha sobre a mesa e ficou de pé.

— Não, eu não gosto de festas — murmurou ele sem olhar para cima.

— Até parece que a gente se conheceu ontem, — Zephy riu e deu um beijo na bochecha de John antes de caminhar na direção do balcão iniciando uma troca de mensagens com sua irmã gêmea, Wendy.

Depois de explicar para a atendente que queria o lanche dela e de John para viagem, a jovem descobriu, com a ajuda da irmã, uma praia tranquila e perto do centro de Londres com trens que estivessem próximo do horário de partida. Não tinha tempo suficiente para programar algo mais especial e decidiu que um piquenique à beira mar seria bom o suficiente, e ainda poderia ir a uma loja de bolos, de volta à cidade, ainda naquela tarde. Ela planejou convidar os irmãos para participarem da última parte, mas conversaria isso com eles quando estivesse na viagem de volta.

— Aqui está — disse a atendente colocando os pacotes com os lanches sobre o balcão ao lado do suporte de papelão com dois copos de refrigerante tampados.

Zephy agradeceu e caminhou de volta em direção à mesa equilibrando tudo.

— Vamos? — chamou ela.

— Aonde? — quis saber John.

— Surpresa. — A jovem sorriu. — Confia em mim?

— Com todo meu coração — afirmou ele tampando a caneta e começando a juntar as fichas de cadastro para guardar na mochila. Por estar praticamente vazia, os lanches também couberam ali dentro e apenas as bebidas eles preferiram carregar nas mãos para não correr o risco de derramar.

— Inicialmente vamos para a estação St. Pancras, depois de embarcar você descobre quando chegarmos.

— Isso tá me parecendo um sequestro — comentou ele com ironia.

— A gente pode dividir o dinheiro do resgate. — Ela entrou na brincadeira.

O casal sorriu e Zephy apoiou a mão no rosto de John interrompendo a caminhada para trocarem um beijo rápido antes de correr até St. Pancras.

A jovem manteve segredo durante todo o trajeto da estação em Londres até o local que a irmã havia encontrado para o piquenique de aniversário. A viagem levou pouco mais de uma hora e, assim que saiu do trem, John sorriu muito feliz em perceber onde estava. Zephy ficou contente com a reação que causou e o som das ondas à medida que se aproximavam do mar imediatamente deixou os dois confortáveis.

— Feliz aniversário! — disse ela parando de caminhar ainda na calçada perto da rampa que levava até a areia e se virando de frente para o namorado.

John ficou em dúvida se a abraçava ou a beijava e fez os dois, mas o carinho não durou muito, pois o casal estava ansioso para comer os lanches que haviam trazido. Depois de escolher um lugar para sentar perto da água, mas não próximo demais a ponto das ondas molharem seus pertences, o casal pegou as embalagens de papel de dentro da mochila e começou a comer. Apesar das batatas fritas um pouco murchas, e os hambúrgueres quase frios, o sabor estava agradável, possivelmente reforçado pelo apetite e a brisa morna que vinha do mar pedindo pelo refresco dos refrigerantes que eles haviam trazido.

O problema é que os ventos naquele dia traziam chuva, e a dupla precisou terminar a refeição de forma apressada, guardar tudo de volta na mochila, incluindo as embalagens vazias, e correr em busca de proteção. A escavação natural em uma das paredes de calcário branco perto de onde eles estavam foi muito conveniente e serviu de abrigo.

Parecia uma pequena caverna, precariamente iluminada pela luz que vinha do lado de fora e por sorte com pouca água no chão, já que a maré estava baixa e a enxurrada não descia em direção à entrada.

Entre pedrinhas coloridas e conchinhas, algo chamou a atenção de Zephy. Uma garrafa long neck transparente tampada com uma rolha estava presa entre duas rochas longe da entrada quase completamente oculta pelas sombras. Ela teve um pouco de dificuldade para caminhar sobre as pedras até lá e, sob o olhar atento de John, alcançar o artefato.

— O que você encontrou? — quis saber ele.

— Uma garrafa com alguma coisa dentro…

Zephy caminhou até a pedra onde o namorado estava sentado e se acomodou ao lado dele.

— Tem uma mensagem… — Ela levantou o objeto para uma região mais iluminada e conseguiu ler o que estava escrito no pedaço de papel branco com linhas que parecia ter sido rasgado do canto de algum caderno. — “Queria ter conseguido salvar você. Por favor, me perdoe” — leu ela. — Macabro…

— Não acho, — discordou John, o que fez Zephy olhar para a esquerda para encará-lo esperando pela justificativa. — Pode ser uma mensagem de luto, alguém que acabou de perder a pessoa amada e está lamentando não ter conseguido salvar, mas não tinha meios para isso. Talvez por uma doença grave…

A jovem deu uma risadinha.

— O que você imaginou? — Ele virou a palma da mão para cima pedindo a garrafa para analisar mais de perto.

— Uma pessoa obsessiva que acreditava ser a salvação de alguém, mas não conseguiu fazer essa pessoa agir conforme o planejado, a matou e segue a vida como se não tivesse feito nada de errado. Muito pelo contrário, lamenta não ter conseguido.

Por alguns segundos dentro da pequena caverna tudo o que se ouviu foi o barulho da chuva caindo até Zephy começar a gargalhar.

— Acho que eu te assustei — admitiu ela.

— Sem dúvida sua criatividade é muito superior à minha. — John devolveu a garrafa a ela.

— Não exatamente, você só não teve a influência dos meus irmãos enquanto estava crescendo. — Zephy analisava a garrafa mais uma vez. — A gente sempre gostou de histórias de detetives, e nelas costuma ter bem mais assassinatos do que romances.

— Eu não cresci lendo romances — reclamou ele.

— Não seria problema algum.

— Uhum, convence meu pai disso… — John suspirou. — Me deixa tentar de novo — ele pediu a garrafa de volta e a namorada colocou o objeto de vidro na mão dele.

O jovem adulto estreitou os olhos, encarou o papel tentando acessar as memórias do provável autor daquele bilhete imaginando o porquê de alguém escrever aquela mensagem e jogá-la ao mar. Teve um sobressalto ao pensar que talvez a garrafa nunca tenha estado no oceano, mas desde que fora jogada na caverna, ali ficou.

— Um casal de namorados veio aqui e não percebeu que a maré estava subindo, quando se deram conta já não conseguiam mais caminhar até a terra firme e as ondas levaram os dois para o mar. Uma das pessoas morreu e a outra voltou aqui e deixou a garrafa com a mensagem. — Ele devolveu o objeto para a namorada contente com sua nova história.

— Bom, não mudou muito o tema, mas agora você me deixou com medo. — Zephy o abraçou pela cintura com o braço esquerdo e deitou a cabeça no ombro de John. — Você lia dramas — ela arriscou.

— Às vezes… — o jovem admitiu. — E terror também.

— Então, vai ver tinha veneno nessa garrafa — ela levantou a cabeça. — A pessoa bebeu, escreveu o bilhete e deixou uma maldição quando morreu. Todo casal que se encontrar aqui vai se separar de forma trágica e nunca mais vai se reencontrar, iguais aos ossos do defunto que foram levados quando a maré subiu.

— Zephyrus, coloca essa garrafa de volta onde você encontrou — disse John em um tom sério.

A jovem obedeceu e, apesar de ter ficado empolgada com as histórias, estava meio decepcionada por ter inventado a última. Era o aniversário dele, não deveria haver lugar para aquele tipo de pensamento.

— Desculpa, — pediu ela ao sentar de volta do lado dele depois de recolocar a garrafa escondida entre as rochas onde estava antes. — Estraguei seu aniversário… — A jovem olhou para o namorado.

— Claro que não estragou. — Ele a envolveu entre os braços antes de se entregar a um beijo apaixonado aproveitando o fato de que estavam apenas os dois no local.

— O beijo de amor verdadeiro quebra a maldição — sussurrou ela ainda recuperando o fôlego quando se afastaram um pouco.

— Esse é o melhor aniversário de que consigo me lembrar — confessou ele com um lindo sorriso para acompanhar. — Teve um que meus pais me colocaram de castigo porque meus amigos demoraram a ir embora. Acho que foi o dos 13 anos… eu tava ficando muito rebelde, segundo eles. — John deu um sorriso amargo.

— Eles começaram a bater em você depois disso? — perguntou Zephy.

— Não, sempre foi assim comigo e minha irmã desde pequenos, era normal lá em casa.

— Acho que eu e meus irmãos crescemos numa bolha pra não saber como era o mundo…

— Seus pais se comportaram da maneira certa. Errados são os que usam violência como se fosse uma técnica de ensino, e não de manipulação através do medo, já que métodos educacionais dão muito mais trabalho e os resultados demoram a aparecer — desabafou John. — Se um dia eu tiver filhos, nunca vou bater neles.

— Se agredir nossos filhos, John, eu acabo com você! — ameaçou Zephy sorrindo para o namorado.

Nunca haviam conversado sobre o assunto antes, já que a relação deles ainda não havia chegado àquele ponto de intimidade, mas ficaram bem à vontade com a revelação.

— Eu quero me formar primeiro, e arranjar um emprego de preferência num hospital — disse ele.

— Não tô com pressa — garantiu ela antes de trocarem mais um beijo apaixonado. — Mas acho que agora a gente já pode ir. — Zephy indicou o lado de fora da pequena caverna onde tímidos raios de sol tentavam secar o chão.

— Vamos andar pela praia? — perguntou John pegando a mochila sobre a pedra e colocando de volta nas costas.

— Estava pensando em pegar o trem e voltar para Londres…

— Tem algum compromisso? — O casal saiu de mãos dadas da pequena caverna.

— Nós temos! — respondeu ela. — Numa loja de bolos!

— Ah, não Zephy… — John não compartilhava a animação.

— É seu aniversário! O bolo é obrigatório. — A jovem o envolveu com os braços enquanto pisavam na areia molhada. — E meus irmãos gostam.

— Eu não gosto de festa…

— Eu juro que você não vai ter uma! — Zephy beijou a bochecha do namorado. — Eles sabem se comportar em público.

John deu uma risada e concordou com um aceno de cabeça autorizando a namorada a chamar os irmãos, Wendy e William, a se juntarem aos dois para comerem um pedaço de bolo. Com um pouco de insistência, Zephy conseguiu convencer o namorado a convidar também sua irmã, Harriet também.

Gostaram da história?
Para ler mais sobre Zephy e John, acesse: Cupcake

4 comentários:

  1. Oi, Helaina. Como vai? Mais uma história que agradou-me por completo. Suas histórias costumam me agradar logo de cara, assim logo no comecinho já estou totalmente conectado com as personagens. Parabéns pelo texto. Ficou excelente. É um privilégio vir aqui e ler um texto bem escrito e elaborado como esse que escreveu, aliás ainda não li nada que tenha escrevido que me desagradou. Continue nos presenteando com suas histórias. Um abraço!



    https://lucianootacianopensamentosolto.blogspot.com/

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    1. Oi Luciano, eu estou bem, e você? Fico muito feliz que tenha gostado tanto do meu texto. Muito obrigada! Vou me esforçar para não desistir. Um abraço e um excelente final de semana pra você!

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  2. Amei essa história e o final.
    Gostei da forma como essa foi escrita e esse tema me encanta.
    Beijos.


    http://www.parafraseandocomvanessa.com.br/

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    1. Que bom! Fico feliz que você tenha gostado!
      Tem mais desse casal aqui no blog, aproveite para ler mais deles!
      Beijos;

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