A primeira coisa que deixou de existir foram seus nomes...
Aquele homem grande todo encolhido sobre a cama fez o coração da
mulher bater fora do ritmo normal. Ela também se sentia desorientada por ter
acordado sem saber quem era e onde estava, mas tentava manter a calma.
Uma enfermeira havia explicado com muita paciência que esse era
exatamente o resultado esperado depois de um mês de tratamento. Eles
esqueceriam sua identidade, mas não coisas como andar, falar e o básico
aprendido na escola, pois isso seria inconveniente para o objetivo final.
Incomodada por ninguém aparecer para confortar o homem, ela
decidiu fazer isso. Sentiu frio quando seus pés descalços tocaram o chão, mas
não recuou da decisão. Andando devagar e levando consigo o que parecia ser
soro preso em uma haste conectado ao seu braço, ela atravessou o quarto.
— Tenha calma. Nós vamos ficar bem. — Ela sentou na cama ao lado do homem. —
Albatroz. — A mulher leu a palavra na pulseira de identificação no braço dele.
Ele olhou para ela com os olhos cheios de lágrimas.
—
Parece que esses são nossos nomes agora. — A mulher sorriu com os olhos
afetuosos.
— Como consegue ficar tão calma? Nós perdemos toda
nossa memória! — Ele deitou de costas para ficar de frente para ela.
— Pelo que a enfermeira disse, nós aceitamos isso. Provavelmente
não éramos pessoas muito boas. — Ela segurou a mão do homem com o braço onde
estava fixada sua pulseira de identificação. — Estou encarando como uma nova
chance.
— Então espero que consigamos nos sair melhor dessa vez,
Beija-flor. — Ele leu o codinome dela.
— Parece que o pessoal aqui
gosta muito de pássaros. — Ela riu e o homem a acompanhou.
—
Talvez seja para ser sinônimo de liberdade. Nossa nova chance, como você disse
— concordou ele.
— Pretendo fazer da melhor forma que puder dessa
vez. — A mulher ficou de pé e fitou a planície com árvores espaçadas através
do vidro da janela da enfermaria. — Mas talvez eu sinta falta dos almoços de
domingo na casa da vovó.
— Você se lembra disso? — O homem ergueu
metade do corpo, se apoiando nos cotovelos, e olhou espantado para ela.
— Não, seu bobo. — Ela riu. — Maneira de dizer...
Albatroz gostou do senso de humor dela.
Depois desapareceu a dor...
— Tem certeza que não é
melhor ir para a enfermaria, Alba?
— Não precisa, sei que você
consegue dar conta disso. — Ele gemia enquanto tirava a camisa. — São só
alguns arranhões.
— Alguns arranhões? Você mergulhou num arbusto
cheio de espinhos!
— Era a única forma de escapar dos tiros...
— Estávamos treinando com paintball. — Beija-flor pegou uma vasilha
contendo antisséptico diluído. — Você não teria morrido de verdade, nem se
machucado! — Ela se esforçava para conter o riso.
Albatroz percebeu e sorriu para ela.
— Bom, pelo menos eu tenho a certeza de que meu parceiro está levando muito
a sério o treinamento. — Ela sentou ao lado dele na cama e com um pedaço de
tecido de algodão começou a limpar a ferida no braço esquerdo do amigo.
O homem franziu o cenho quando sentiu o remédio em contato com o ferimento.
— Ainda bem que você estava usando o colete, senão o estrago seria maior...
Além do braço, também havia cortes no pescoço e era onde Beija-flor limpava
no momento.
Para poder fazer o serviço direito, ela havia se aproximado mais de
Albatroz e seu nariz quase encostava no queixo dele quando seus olhos se
encontraram.
Por alguns instantes eles se encararam e olharam para os lábios um do
outro, mas nenhum dos dois se atreveu a dar o próximo passo.
— Ainda não Alba, — pediu Beija-flor quebrando a tensão. — Preciso de mais
tempo.
— Tudo bem. — Ele sorriu. — Também não estou nos meus melhores dias e
definitivamente não estamos no melhor lugar.
— Não vai faltar oportunidade. Acho que vão nos mandar em uma missão
internacional! — comentou ela animada.
— Uau! Parece que perdemos os almoços de domingo na casa da vovó, mas
ganhamos jantares ao redor do mundo.
A mulher sorriu de volta e deu um beijo no rosto do amigo antes de
continuar com os curativos.
Em seguida se foi o medo...
— Não acredito que aquele cara tinha realmente planos para explodir o museu
aproveitando o feriado de primeiro de janeiro! — Beija-flor chutou a mochila
que havia acabado de tirar dos ombros para debaixo da cama do hotel.
— Parece surreal, mas ele tinha os mapas detalhados do lugar inteiro! —
Albatroz fechou a porta depois de passar e colocar o aviso de 'não perturbe' pendurado do lado de fora. — Salvamos o dia mais uma vez! — comentou ele
sorrindo.
— Hum, temos serviço de quarto. — A mulher levantou o cloche prateado que
estava sobre um carrinho no meio do cômodo. — Não tinha ideia do quanto
estava faminta até agora. — Ela passou o dedo na beirada do purê de batatas
que estava ao lado da carne cozida, colocou na boca e gemeu. — Que delícia!
— Olha só essa vista! — O homem atravessou o quarto e abriu a janela que na
verdade era a porta de uma pequena varanda. — Dá até para ver a torre Eiffel
daqui!
— Bom, se a gente se esforçar um pouco dá mesmo. — Beija-flor apertou os
olhos franzindo a testa.
— Você está ficando muito exigente. — Ele soltou o corpo sobre a cama. —
Não poderíamos nos hospedar em um hotel no centro. De certa forma somos
procurados pela polícia, mesmo tendo feito um favor a eles.
— Eu diria que estou ficando mal-acostumada. — Ela se jogou ao lado dele
com um sorriso no rosto. — Parece que o pessoal está muito satisfeito com o
trabalho que temos feito.
Um barulho inesperado quebrou o silêncio e o clima entre os dois.
— Acho que foi meu estômago — comentou a mulher sentando na beirada da
cama.
— Não está errado. Você não come nada desde que saímos para a missão!
— Eu acho melhor assim — comentou ela. — Comer durante o trabalho me deixa
meio lenta... — acrescentou.
— Pois se eu fizer igual você, termino o dia inconsciente... — Albatroz riu
alto.
Os dois encontraram uma mesinha com duas cadeiras no canto do quarto e a
arrastaram até ficar de frente para a varanda. Nos primeiros minutos a dupla
apenas comeu em silêncio enquanto bebiam do vinho que viera junto com a
refeição.
— Não tem sido uma vida tão ruim assim — disse Beija-flor depois de
terminar de comer saboreando o resto do vinho que ainda tinha em sua taça. —
É como diz o nosso lema. Trocamos o almoço de domingo na casa da vovó...
— Por jantares ao redor do mundo — completou Albatroz sorrindo e batendo
sua taça contra a dela em um brinde.
Depois de tomar o último gole e a deixar vazia sobre a mesa, ele ficou de
pé convidando a mulher a fazer o mesmo. O homem a abraçou e começou a dançar
com ela pelo quarto.
— Sem música, Alba?
— Você é toda a melodia que eu preciso, Flor — declarou ele deixando
extravasar a paixão que sentia.
Dessa vez, depois da troca de olhares, seus lábios se uniram acabando com a
distância entre eles e dando início a um beijo carinhoso que aos poucos foi
aumentando de intensidade.
Suas línguas se entrelaçavam deixando extravasar o desejo que nasceu no dia
em que eles se viram pela primeira vez, mas preferiram esperar com paciência
até os dois estarem prontos para se entregar por completo nos braços um do
outro. Ao fundo, o barulho dos fogos dava boas-vindas ao ano novo.
Até que a morte os separou...
*Aviso, conteúdo sensível: agressão física
— Flor, você tem visibilidade? — perguntou Albatroz pela escuta em seu
ouvido.
— Clara e perfeita — respondeu ela. — Ele está saindo da casa. Se mantiver
a rotina que temos observado desde o início da semana, vai para a mesa da
varanda. Assim que sentar lá, eu faço o serviço.
— Estou te esperando com o carro ligado.
— A porta está abrindo... — Beija-flor apoiou o rifle de precisão sobre a
mureta atrás de onde estava escondida e colocou o olho na mira.
Mal o homem deu alguns passos para fora de casa, uma garotinha que não
devia ter mais de cinco anos correu atrás dele e o abraçou.
O homem sorriu com o carinho dela e a ergueu do chão com um abraço
fraternal. Quase não teve tempo de soltá-la quando outra veio de dentro de
casa e fez o mesmo. Gêmeas. Completamente à vontade com o pai.
No relatório havia uma reclamação do filho mais velho dizendo que o pai
agredia as meninas e por isso ele o queria morto, mas Beija-flor não
localizou nem mesmo um arranhão nos corpos expostos pelos shorts e camisetas
dos pijamas que elas usavam. E a atitude tranquila delas, na presença dele,
não era condizente com os relatos de violência.
Era a primeira vez que via as duas pessoalmente. Até então ela imaginou que
estavam sendo mantidas longe do homem em segurança na casa de algum parente.
Ele ocupou o lugar previsto pela mulher. Posição perfeita para um tiro limpo
assim que as crianças se afastassem. Mas ela hesitou. Havia alguma coisa
errada.
Não era um terrorista ameaçando um grupo de pessoas num trem, metrô ou
shopping lotado. Era um pai carinhoso tomando café da manhã com as filhas.
Beija-flor desmontou o rifle, o guardou e correu para o carro.
— Feito? — perguntou Albatroz assim que ela entrou.
— Não consegui.
— Como assim não conseguiu?
— Tem alguma coisa errada Alba... tem duas meninas com ele e aquele
homem... — Ela estava com dificuldade para verbalizar o que estava pensando.
— Aquele homem... não é...., mau...
— Ah, tenha paciência... é sério isso? — Albatroz bateu com as mãos no
volante. — Me dá isso aqui!
Ele tentou tirar a mochila com o rifle da mulher, mas ela a abraçou com
força.
— Todo mundo já deve estar acordado... não vamos conseguir fugir se você
for lá agora — retrucou ela com os olhos fechados.
— Não acredito que te bateu senso de moral bem agora... estamos quase sendo
promovidos!
— Olha no que estão transformando a gente! Assassinos de aluguel! Quem sabe
os motivos que levaram aquele cara a encomendar a morte do pai?
— Parece que ele maltrata as filhas, sei lá! — Albatroz não escondia a
irritação na voz.
— Elas pareciam muito à vontade e felizes com dele e não vi marca em
nenhuma delas — falou a mulher trincando os dentes tentando lidar com a
raiva que sentia. — E com a lente dessa mira eu conseguiria ver uma mosca
pousada sobre as tortas que estavam naquela mesa. Não estão sendo totalmente
honestos com a gente.
— QUE DIFERENÇA ISSO FAZ? — gritou ele.
Beija-flor ficou em choque com a declaração do namorado e decidiu parar de
discutir. Com raiva e em silêncio, Albatroz dirigiu de volta para o centro
de treinamento.
(...)
— Tem ideia do quanto a atitude de vocês custou?! — O supervisor estava
visivelmente transtornado quando terminou de ouvir o relato da missão falha.
O questionamento de Beija-flor sobre o assassinato do homem inocente não
ajudou nenhum pouco a melhorar a situação.
— Levem os dois daqui — ordenou ele aos guardas parados ao lado da porta. —
Reclusão na caixa de concreto por tempo indeterminado. Espero que aprendam
alguma coisa depois disso.
O casal fez o percurso todo em silêncio enquanto era escoltado para uma
cela sem janelas trancada com porta de ferro com uma pequena abertura perto
do chão por onde cada prisioneiro recebia apenas uma porção individual de
ração militar por dia.
Era também a única fonte de luz da cela. Eles já tinham visto o lugar, pois
uma vez durante o treinamento todos eram levados a conhecer o seu destino
caso não cumprissem as ordens.
O primeiro guarda abriu a porta e o segundo empurrou os dois para a
escuridão. Ambos caíram no chão fazendo um som abafado, mas não reclamaram
do tratamento recebido.
— Me perdoa, Alba — pediu a mulher ao perceber pelo barulho das botas, que
os guardas já estavam longe.
— Eu não quero falar com você. — O homem encostou num dos cantos da cela.
— Por favor... Eu devia ter imaginado que as coisas acabariam sendo assim.
— Ela tentava encontrar o namorado engatinhando pela escuridão. — Isso de se
achar justiceiro... Que está fazendo por um bem maior... Quando na verdade
não somos nada mais do que assassinos de aluguel. Alba... — Ela finalmente
sentiu os coturnos dele com seus dedos.
— Eu já disse que NÃO QUERO FALAR COM VOCÊ! — O chute que Albatroz desferiu
em Beija-flor por pouco não acertou sua boca passando a poucos milímetros de
seu queixo. A sola do coturno atingiu o ombro direto dela a arremessando
para o lado oposto de onde ele estava, a fazendo se chocar contra a parede.
Mesmo assustada com a reação, ela voltou para perto dele.
— Alba, por favor. Me perdoa — dizia ela enquanto se arrastava ignorando a
dor. — Vamos dar um jeito de escapar daqui. Fugir para bem longe deles.
Podemos ter uma vida feliz, juntos, longe disso tudo — Beija-flor se apoiou
nos joelhos dele e olhou na direção de seu rosto oculto pela escuridão. — Eu
te amo.
— Nosso lema não significa nada para você? — Ele agarrou os pulsos dela. —
Eu não quero uma vida de almoços de domingo na casa da vovó!
— Eu não vou me tornar uma assassina de aluguel só para jantar ao redor do
mundo! — afirmou ela enquanto era erguida contra a sua vontade pelo homem
que ficou de pé.
— Então fique fora do meu caminho. — Albatroz andou até a parede oposta
arrastando Beija-flor pelo chão e a atirou com as costas contra o concreto.
Depois tentou desferir um soco no rosto dela, mas sem enxergar o que fazia
acabou acertando sua têmpora esquerda.
Ainda motivado pela raiva, o homem chutou a mulher várias vezes a obrigando
a se encolher em posição fetal para se proteger. As lágrimas inundaram os
olhos dela em um choro silencioso. A agressão durou alguns minutos e só
parou quando ele se cansou.
No dia seguinte, Albatroz foi levado para fora da cela e não voltou
mais.
Esse conto é parte da minha fanfic de Sherlock,
Memórias Anônimas.
Se quiserem conhecer a história completa, ela está publicada no Wattpad!
Leia aqui!
UAU, não esperava esse final, super forte. Você escreve muito bem Helaina!
ResponderExcluirOi! Fico feliz por você ter gostado e por ter te surpreendido! Muito obrigada!
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