Aparência

Que péssimo, — ela praguejou em seus pensamentos. — Bem hoje eu tinha que ficar sem internet e acabar nesse lugar.

As 20 máquinas do infocentro comunitário estavam ocupadas, por isso ela precisou esperar ao lado da porta. Sobre cada uma das cinco longas mesas de madeira, havia quatro computadores com cadeiras de plástico em frente aos equipamentos.

Mariana achava ruim usar aquele lugar porque os usuários que o frequentavam aparentemente desconheciam por completo o significado da palavra comunitário e deixavam os computadores em péssimo estado ignorando que outras pessoas poderiam usá-lo.
 
Vários cartazes colados nas paredes com as normas de utilização aparentemente eram negligenciados. Esse fato foi comprovado por Mariana quando finalmente se sentou em frente a uma máquina recém-desocupada e constatou que o garoto que a utilizara havia feito um ninho de papel de bala em volta do teclado. Ela suspirou enquanto recolhia os papeizinhos para jogá-los no lixo.

Uma menina na máquina ao lado dela, que usava fones de ouvido com uma música alta tocando, sorriu em meio a um deboche enquanto estourava uma bola de chiclete na frente do rosto e colocava a goma novamente dentro da boca com os dedos para continuar mastigando.

Antes de começar sua busca, Mariana checou seus e-mails, seus perfis nas redes sociais, que nunca deixava de atualizar diariamente, e acabou se distraindo e esquecendo o objetivo que a levara até ali. Quando distanciou seus olhos por um instante do monitor, tomou um susto ao perceber quanto tempo havia passado.

A tarde havia dado lugar ao escuro da noite, e os frequentadores do infocentro começaram a mudar. Um arrepio que começou na base da coluna de Mariana logo se espalhou pelo seu corpo. Sua boca ficou seca e seus batimentos cardíacos aceleraram.

Ao seu lado não estava mais a menina mastigadora de chiclete, mas sim um homem cujo rosto ela não conseguia ver por causa do imenso capuz que compunha o agasalho que ele usava mesmo com o calor que fazia.

Na fileira de computadores logo à sua frente, um homem alto de cabelos brancos e despenteados acessava uma página cheia de fotos de animais sendo torturados.

O pânico estava tomando conta de Mariana e o desejo de ir embora dali surgiu como uma voz impossível de ignorar em seu subconsciente.

A necessidade de fazer a pesquisa a segurava ali, mas ao ver uma senhora sentada no computador ao seu lado olhando um site com fotos de moças e rapazes seminus com aparentemente a mesma idade de Mariana, a fez levantar e sair daquele lugar correndo sem querer olhar para trás.

(...)
Meia hora mais tarde, o homem que estava de casaco com capuz, pegou seus livros e foi para a aula. Mesmo com a febre causada por conta da sinusite que o havia acometido, ele não perdia um só dia. Era a sua única chance de conseguir finalmente passar no vestibular.

O homem alto de cabelos brancos e despenteados enviava freneticamente e-mails a todos os seus amigos e divulgava nas redes sociais dados sobre uma famosa grife de roupas que estava usando peles de animais em suas confecções tentando iniciar uma campanha contra ela.

A mulher continuava com os olhos no site que hospedava as fotos de moças e rapazes seminus. Ela havia recebido uma informação de que seu filho, que havia sido sequestrado alguns meses atrás, estava sendo obrigado a se prostituir em outro país em troca de moradia e alimento. A polícia estava sem esperanças de conseguir encontrá-lo, mas ela nunca desistira.

Mariana chegou em casa decepcionada por ter perdido tempo nas redes sociais e acabado não fazendo a pesquisa que tanto precisava. Teria que usar toda a sua criatividade para encontrar uma solução para o problema que tinha nas mãos. Precisaria descobrir sozinha, a melhor maneira para se livrar do cadáver de seu vizinho sem deixar rastros.

 ...
"Essa é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com a realidade é mera aparência."

[Poema] Além do que se enxerga

Não existe melhor estimulante do que a imaginação.
Não importa quanto café você tome,
nada pode te deixar mais desperto
do que imaginar um mundo
e criar personagens para habitá-lo.

Deus criou o mundo,
e ao final descansou,
porque é impossível
dormir em meio ao processo criativo.

Dar-lhes vida,
e certa quantidade de livre-arbítrio
para conseguir contar sua história
pode te manter acordado por horas.

Uma dádiva e uma maldição,
uma bênção e um desalento.
A única coisa que nunca conseguirei imaginar,
é como é possível viver em um só mundo,
absolutamente real e tangível.

Ensino enquanto crio,
mas também aprendo.
É um dom de poder incalculável,
que exige todo o cuidado
sendo muita força necessária para controlá-lo.

Seria muito perigoso,
se algo saísse do controle,
ou caísse em mãos mal intencionadas.

Pois, por trás de cada palavra,
há segredos individuais.
Diferentes para quem as escreve,
Diferentes para quem as lê,
Diferentes para quem as ignora.
Helaina - 13/10/2011